logo“Hoje”, advérbio de tempo que, na internet, significa “aqui” e “agora”, na medida em que sempre que alguém, porventura, pegar nas linhas que agora escrevo, para esse leitor implícito será sempre “hoje”, escrevo sobre Goliath, RPG de sobrevivência, título com a chancela do estúdio russo Whalebox Studio, dado ao público a 12 de Maio de 2016, disponível no PC, Mac e Linux através da Steam.

Confesso que uma das primeiras coisas que me veio à mente quando me sentei para escrever este artigo foi a seguinte questão: porque é que alguém daria ao seu jogo o nome de um brutamontes filisteu que perdeu um combate contra um provavelmente imberbe David, sendo morto nada mais nada menos que com uma pedra lançada de uma funda e depois decapitado porque subestimou o seu adversário? Se me perguntassem, julgo que a malta do branding deveria ter mais atenção. Agora que o pus por escrito, lembrei-me que talvez o Lex Luthor devesse tentar esta estratégia para lidar com um certo colosso kryptoniano com a mania de usar as trusses por cima dos colãs (a palavra em português agora é assim, aparentemente). Mas convenhamos, deixem a malta do branding em paz, o título faz sentido quando um dos pontos fortes do jogo é o facto de este nos dar a possibilidade de construirmos e pilotarmos o nosso próprio mecha, mas já lá iremos.

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O título do jogo, ao recordar-me da passagem do 1º Livro de Samuel fez-me encontrar uma chave para escrever sobre ele. A história bíblica de David e Golias (aka brutamontes filisteu) é uma das narrativas fundantes da cultura ocidental. Para reconhecermos este facto precisávamos apenas de perceber que se trata de algo que se passou há qualquer coisa como 3300 anos e ainda hoje falamos nisso. A maioria ficará feliz se os bisnetos ainda falarem neles de vez em quando, imaginem fazer algo digno de ser recordado daqui a três milénios. No entanto, se ainda assim é necessário maior convencimento, então basta olhar para as inúmeras obras de arte que nela se inspiram, em campos com a pintura, a escultura, a música e o cinema. Goliath, ainda que talvez inadvertidamente, pelo seu título traz esta inspiração para os videojogos.

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As histórias fundantes, para além de arquétipos narrativos e tropos artísticos, têm repercussões menos palpáveis que indelevelmente matizam o tecido social e moral. Vejamos: o Ocidente tem uma paixão por todas as narrativas em que alguém, normalmente tido como o mais fraco e por quem ninguém dá cinco tostões, ganha contra um adversário nítida e avassaladoramente superior, porque tem Deus do seu lado, porque é mais inteligente, porque é mais corajoso ou simplesmente porque é mais justo e porque o adversário se assoberbou e o subestimou. Se acham que não, pensem no estatuto mítico da Batalha de Aljubarrota no imaginário e cultura portugueses, ou nas invasões napoleónicas. São histórias como a de David e Golias que plasmaram esta moral inata, que nos fazem vibrar pelos pequenos.

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Goliath permite-nos ser David e ser Golias, mas nunca ao mesmo tempo. A dicotomia entre um e outro é bem explorada pelas vantagens e desvantagens de assumir cada uma das formas. Trata-se de um jogo de aventura, com elevado tempero RPG e uma cadência de história de sobrevivência. Neste título encarnamos a pele de um jovem piloto da 2ª Guerra Mundial (a quem, por coesão criativa vou chamar de David) que, no processo de se despenhar, se vê transportado para um local onde se encontram vestígios das civilizações terrestres, mas que, definitivamente, não é a Terra. Aí desencadeia-se a luta pela sobrevivência. A mecânica é relativamente simples e segue uma lógica crescente. Como humanos (David): reunir matéria-prima, processá-la, construir máquinas e mechas, fugir dos monstros tornando-nos invisíveis ou enquanto fazemos pew pew com o nosso risível revólver. Como mechas (Golias): reunir matéria-prima, processá-la, construir  melhores máquinas e melhores mechas, lutar contra os monstros com um notável arsenal (armar-nos em bons, destruir os três mechas que podemos levar connosco de cada vez e fugir com o rabinho entre as pernas voltando à forma de David). Tudo isto enquanto nos vamos teleportando de “ilha” para “ilha”, fragmentos que derivam e mutuamente se orbitam, fazendo aliados e inimigos, à procura do caminho para casa.

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Fiquei impressionado com a forma como o sentido de sobrevivência deste jogo é apimentado pela capacidade criar algo mais e melhor, se bem que padece de alguma repetitividade. A arte simpática, se bem que não extraordinária. (A primeira vez que vi o Goliath e madeira – o primeiro que conseguimos construir – o aspecto, por algum motivo,  lembrou-me de The Iron Giant.)

Goliath é um título divertido em que o jogador controla o tempo, mais ou menos acelerado, consoante o nosso estilo e vontade de derrubar árvores partir pedra e afins. Vale a penar dar uma espreitadela.