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Segundo o marido sou uma licenciada em Horror Freak com especialização em Zombie theme everything. Um mestrado que comecei a tirar há muitos muitos anos, era eu uma criança (como diz a canção de José Cid) e que, julgo eu, nunca irá terminar.

Esta obsessão teve início tinha eu 7 anos, decorria o ano de 1984, e num tempo em que só haviam dois canais de televisão por onde escolher, o filme Night of the Living Dead do realizador George A. Romero, um filme a preto e branco de 1968, passava na sessão de cinema de Sábado à noite na RTP1. Vivíamos num tempo em que a sobre-protecção parental não existia, os avisos de violência nos programas eram praticamente inexistentes e os meus pais, devotos aficionados da ideia de que deveremos viver com as consequências das nossas escolhas, depois de centenas de avisos à criança de 7 anos para se ir deitar (aquilo não era um filme de “garotos” – foi esta a expressão do meu pai), e depois da criança, que queria ser adulta à força teimar que era capaz de aguentar e sabia que aquilo era “a fingir”, ficou a ver o filme. O inevitável aconteceu– a criança ficou absolutamente aterrorizada. Apesar de fechar os olhos praticamente em metade do filme, a Alexa dos 7 anos teve pesadelos com os “mortos-vivos” durante dias. Às vezes, para não dizer sempre, os pais têm razão (lição que aprendi muito bem nesse dia).

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Com o passar dos anos o medo esvaneceu-se. No seu lugar ficou um fascínio que se vem cimentando até aos dias de hoje. Aos 15 anos comecei a coleccionar filmes do George A. Romero e outros artigos relacionados com a temática Zombie que fui considerando relevantes – colecção que prezo como ouro a cada artigo adicionado. À medida que a maturidade da idade foi chegando, e com ela um olhar diferente sobre o mesmo objecto tantas vezes visto, a perspectiva foi alterando, as ideias mudando de lugar, mas a paixão manteve-se intacta. E explico-vos o Porquê.

A palavra Zombie tem origem em duas palavras distintas: Zumbi (que significa Fétiche), e Nzambi (que significa “Um Deus”), ambas as palavras usadas no dialecto kikong, dialecto esse falado em alguns países da Africa Ocidental, como o Congo. Ambas as palavras teriam um significado bastante religioso, simbolizando um ritual em que, através do uso de um pó especial paralisante do sistema nervoso, os “Deuses” subjugavam os sujeitos de tais rituais à sua total vontade. Para isso acontecer, o pó apenas que teria que entrar na corrente sanguínea através de uma ferida. Um ritual Voodoo levado depois para o Haiti e cuja infâmia rapidamente se espalhou por todo o continente americano. Os Deuses escolhiam e fabricavam escravos sem vontade própria através deste ritual. Pessoas estáticas, paralisadas, presas em si próprias, sem vida…sem “Alma”….essa coisa incorpórea e indefinida que, ironicamente, nos define.

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Desta ideia, para a ideia de um corpo morto retornado à vida, sem consciência e sem alma, foi um pequeno salto. George A. Romero não foi o primeiro realizador a levar este conceito ao cinema, mas foi sem dúvida o mais relevante por tudo o que conseguiu dizer ao dizer tão pouco.

Em 1968, numa altura em que os Estados Unidos se encontravam em absoluta polvorosa com a Guerra do Vietname e, a luta pelos direitos de igualdade da comunidade negra e, mais importante que tudo, a morte de Martin Luther King Jr., George A. Romero lança um filme de terror de série B, de baixíssimo orçamento, que conta a história de dois irmãos que visitam a campa dos seus pais no cemitério da sua terra natal, para aí descobrirem que os mortos se recusam a morrer. Um morto, transeunte no cemitério onde talvez iria ser enterrado, deambula pelas campas. Ataca os dois irmãos, a irmã foge e encontra uma casa abandonada e aí desenrola-se toda a acção de sobrevivência. Luta. Choque. Humanidade e desespero. O protagonista deste filme? Um actor negro desconhecido – isolado e fechado numa casa com caucasianos. Um filme de sobrevivência e, tão discretamente, de racismo e humanidade.

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Anos depois, nos anos 80, década do apogeu consumista nos Estados Unidos, a era de: um shopping mall em cada esquina, George A. Romero escreveu e realizou o seu mais aclamado filme até hoje: Dawn of the Dead, um filme em que os mortos renascem e, sem razão explicável, se concentram num centro comercial, como se soubessem de antemão que os vivos sempre se concentrarão neste lugar de consumo inesgotável.

Já na década de 2000, na era após o 11 de Setembro, este fabuloso realizador lança Land of the Dead – um filme onde, depois do apocalipse, os ricos controlam o Mundo desde a sua torre, subjungando todos os outros à sua vontade mesquinha.

E na era das redes sociais, o mestre lança Diary of the Dead, onde nos mostra personagens cuja motivação no apocalipse não é ajudar o seu semelhante – é gravar o que está a acontecer para poder partilhar um dia.

Em todos os filmes, existe sempre uma característica única: os Zombies, que Romero apelida de Living-Dead (Mortos Vivos), são seres que surgem sem uma explicação aparente…talvez seja um vírus…talvez, como diz na Bíblia: “Quando o Inferno estiver cheio, os mortos andarão sobre a terra”…e, se o Inferno existe, com tudo o que a nossa espécie já mostrou em perfídia, o Inferno estará efectivamente cheio… A razão, para Romero, não é importante. O Início não importa – o fundamental é o que fazemos e como terminamos.

Estes Não-Vivos deambulam sem destino, sem objectivo a não ser…consumir. Alimentarem-se. Devorarem os Vivos. Os seus olhos espelham o que lá dentro se passa…Nada. Nem uma centelha da pessoa que alguma vez habitou aquele corpo. É um depósito vazio. Aquele elemento indefinível que é a “Alma”, define-se aqui como nunca na sua não existência.

Para uma Mulher que vive de sentimentos, cuja  vontade de conhecer a complexidade do espectro de emoção se tornou na sua razão de viver, a paixão pelo ser que representa a ausência de tudo isto não é um antagonismo – é uma consequência.

Quando bem contadas, as histórias de mundos apocalípticos zombies, tocam como nenhum outro meio, a singularidade do que nos torna humanos. E isso Apaixona-me!

De todos os exemplos que vos poderia dar, falo-vos do que mais me marcou no mundo dos Videojogos: em The Last of Us, quando o Mundo como o conhecemos se eclipsou às mãos do fungo cordiceps, transformando os infectados em seres zombiescos, descobrimos a verdadeira humanidade e sensibilidade da nossa personagem: Joel. Deixamos de ver um  puro sobrevivente para vermos nele um Pai.  Tal como na obra-prima literária: A Estrada, é o caminho que percorremos e como carregamos “a chama” do amor que sentimos uns pelos outros, que verdadeiramente determina a nossa salvação.

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Em 2009, quando comecei a coleccionar a BD The Walking Dead, que depois deu origem a uma popular e brilhante série (pelo menos para mim), e genial jogo da Telltale Games, foi exactamente essa singular característica de conhecer cada uma das personagens como se fossem família, de perceber o impacto de cada acontecimento na sua personalidade, que me cativou até hoje. E sim, a BD, tal como a série, teve os seus momentos maus em qualidade….alguns muito maus…mas os criadores, e principalmente, no caso da série, o desempenho fantástico dos actores, conseguiram fazer com que eu nunca desistisse de seguir a vida de Rick Grimes. A sua luta consigo mesmo em não se tornar aquilo contra o qual tanto luta – os Walkers, seres andantes que nada querem para além de consumir. E para que isso aconteça não é necessário estar morto. Basta apenas habituar-se à desumanidade e crueldade do Mundo, ao ponto de já não se sentir emocionalmente afectado. Afinal, quando se dança com o Diabo, o Diabo não muda – faz-te mudar!

Não escondo que a estreia da sétima temporada de The Walking Dead me inspirou a escrever este artigo. A brutalidade do episódio não esteve na sua violência gráfica que tanto chocou as mentes púdicas e hipócritas da sociedade americana. A verdadeira brutalidade, que me perturbou e me levou a escrever, esteve no sorriso da personagem Negan…no desespero de Maggie… no olhar perdido e aterrorizado no outrora líder Rick, reduzido agora a ao estado emocional de um cãozinho espancado que ainda assim lambe a mão do dono… no olhar absolutamente vazio de Carl…que, depois de crescer neste mundo, já não sente nada!

O marido tem razão – sou uma Horror Freak com mestrado em Zombie Theme. Uso a ficção como forma de melhor entender a realidade que se vai tornando, lamentavelmente, menos emocionalmente real. A imunidade à crueldade, abunda. O cultivo da insensibilidade e ostentação do fútil tornou-se uma religião.  A alienação tornou-se uma ciência.

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Sim – sou apaixonada por Zombies – eles são o oposto (ou talvez serão o reflexo em espelho) da Alma Humana. São aquilo em que nos arriscamos a tornar se deixarmos de sentir empatia pelo outro. Temo-os. Afinal, tal como aconteceu no mais icónico fascículo da BD, não quero chegar ao ponto de dizer: “We are all The Walking Dead”!

Imagens cedidas por Alexa Ramires Zombie Collection Outono- Inverno 2016/2017. Aceitam-se donativos para continuar a colecção.