Com este título, pensavam que ia falar sobre Yu-Gi-Oh, cujo primeiro jogo para PS1 era, vá, “decentezinho”?

Há coisas surpreendentes não há? E com esta platitude podia abrir as hostilidades de um spot publicitário ou encerrar uma palestra, arrancando o microfone do palanque, e ainda com os fios descarnados a emitirem faíscas fazer um dos mais-ou-menos épicos mic drops da história dos mic drops imaginados.

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Podia também dizer-vos que tinha este Post Scriptum pensado há semanas, e que estava perfeitamente definido que iria falar sobre o Digimon Digital Card Battle, mas estaria a mentir. Como devem ter reparado as nossas rubricas estão a ser cumpridas de forma rígida e rotativa pela redacção, o que significa que esta semana calharia ao Leonel o ónus de nos trazer uma maravilha perdida das consolas da Sony. Mas uma inesperada viagem até à Grande Maçã obrigou-nos a alterar os planos à última da hora, e de entre os milhentos jogos de consolas PlayStation que joguei, por alguma razão este jogo de cartas de Digimon não me saía da cabeça. E como estas coisas não devem ser contrariadas, aqui vamos nós.

Os jogos de Digimon são uma valente trampa. Ainda no início deste ano o disse quando analisei aquele que é ainda hoje um dos meus jogos do ano Digimon Cyber Sleuth, e relembrei o quanto os Digimon World de PS e PS2 eram um valente lixo surrealista, mas não do género que esperaríamos de Breton ou mesmo do porta-estandarte do movimento, o Dali, mas sim o surrealismo de alguém que apanhou uma má bebedeira com cerveja Cintra e vinho carrascão e decidiu produzir jogos de uma série infanto-juvenil japonesa.

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A série de televisão de Digimon surge numa fase em que já estava com os pés na Faculdade, e a mínima curiosidade que a franquia me suscitava advinha da minha ainda paixão por Pokémon e por tentar perceber o que estes concorrentes de nome Digimon significavam. Acabei por oferecer o Digimon World a um primo mais novo como prenda de anos e cedo percebi que entre dar-lhe aquilo ou chocolates fora do prazo a diferença é que basta tirar um pouco do bolor e ainda se apanha algum sabor doce no chocolate.

Quando este Digimon Digital Card Battle saiu torci bastante o nariz. A minha experiência com TCGs tinha-se limitado a coleccionar desde a década de 1990 cartas de Magic the Gathering pelas ilustrações, porque era mais do que difícil encontrar alguém com quem jogar. Com as devidas limitações de conhecimento que possuía na altura (que eram apenas ligeiramente inferiores às que possuo hoje) ver um videojogo a aventurar-se pelos meandros dos TCGs parecia algo interessante, especialmente num franchise cujo único jogo lançado à época era uma valente trampa, mas cujos concepts e ideias de personagens pareciam apelar a um público mais jovem adulto do que Pokémon.

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Digital Card Battle não podia surpreender-me mais ao primeiro impacto: ultrapassados que estavam os primeiros momentos de narrativa superficial, o jogo atirava-nos para o puro e duro jogo de cartas, em que o sistema passava não só por uma base hiper-simplificada do pai de todos os Trading Card Games, com uma série de adições que o tornavam uma verdadeira adição (passando a redundância e o óbvio trocadilho), como lhe conferiam uma grande profundidade estratégica.

Como seria de esperar, em cada combate o nosso objectivo era evoluir ao máximo as nossas cartas, chegando ao ponto de podermos ter um Ultimate Digimon que não só eram bastante poderosos como muitas vezes faziam one-hit kill como o Éder no Europeu. Os elementos das cartas eram importantes, e à semelhança do sistema de forças e fraquezas de Pokémon e tantas outras séries, o sistema táctico aqui recaía acima de tudo no tipo de ataque que desferíamos. Sempre que dava início à Fase de Batalha era-nos pedido que escolhessemos um de 3 ataques (Forte, Médio, Fraco) e ao nosso adversário o mesmo. O problema é que estas escolhas eram high risk-high reward, e funcionavam por contrariedades, o que significa que era possível que a nossa aposta num Ataque Forte que iria desferir imenso dano ao adversário falhasse ou que fosse contrariado por um counter do Digimon inimigo.

Para este factor de desequilíbrio entre cartas jogava também a nossa aplicação de cartas de suporte para as batalhas, também elas não-reveladas até que a acção tomasse partido, o que conduzia muitas vezes a um volte-face que transformava uma batalha perdida a priori numa luta digna do Rocky.

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Com todo o historial passado na PS1 (de lembrar que quase em simultâneo ao lançamento de Digital Card Battle saiu para a mesma consola a medíocre sequela de uma série terrível como é Digimon World) não demorou muito tempo até que DGC ganhasse o espaço de melhor adaptação a videojogo da franquia para mim, sendo apenas igualado (ainda que seja difícil de comparar jogos de géneros diferentes) com os bastante aceitáveis fighting games lançados para as portáteis da Nintendo.

Digital Card Battle provocou-me outra curiosidade: foi a primeira vez que um videojogo me levou a comprar também as cartas físicas, e a tentar perceber o interesse do sistema de jogo de TCG real, e de que forma ele cumpria as expectativas do videojogo que me manteve agarrado durante semanas, e que só larguei quando desbloqueei todas as cartas. É claro que até hoje ainda estou para perceber se é bom ou não, visto que apesar de ter comprado o baralho de arranque do jogo, nunca tive ninguém com quem jogar. E tinha um ar de metaleiro badass para manter na Faculdade que não se coadunava com andar com um baralho de cartas de Digimon no bolso à procura de um compagnon de route.

Infelizmente, como aconteceu a grande parte dos meus save games de Saturn e PS1, a minha jornada de semanas para desbloquear todas as cartas de Digimon está hoje sem registo após a morte do meu primeiro Memory Card. Mas é curioso também que escrever este artigo e mergulhar nas memórias dessas férias de Natal da Faculdade em que passei no quente da minha casa a jogar Digital Card Battle me leva a um lugar acolhedor na minha memória. Talvez lá regresse, como quem regressa a um lugar em que foi feliz.