Estou há alguns dias a tentar decidir sobre o que escrever. À procura de “inspiração” ou um tema que possa ser considerado relevante para esta rúbrica. É que este Post Scriptum foi criado para falarmos de jogos que são como diamantes perdidos no imenso e variado Universo de videojogos que a Playstation 2 nos trouxe.

Mas a única coisa que me apetece fazer é falar de um jogo que marcou esta geração. Que revolucionou os videojogos de acção. Aquele que todos os jogos do género aspiraram a ser um dia. Aquele jogo cujo capítulo II foi o merecido canto do cisne que fechou o ciclo de novos jogos desta fabulosa consola. Não quero falar de jogos escondidos que provavelmente ninguém conhece. Tenho a minha alma em revolta. Tenho o meu coração em tumulto. Foi um ano que me virou do avesso e se abateu sobre mim como um meteorito se abate sobre um planeta. E enquanto procuro refúgio em cidades vitorianas e mundos perdidos em pesadelos, quero regressar ao momento Único que vivi em 2005 e conheci a personagem que se tornou tão tatuado em mim como as cinzas dos seus pecados estão Nele.

Hoje quero falar de Kratos e daquele jogo indescritível que é God of War! Como descrever algo que à partida defino como indescritível? Posso tentar falar apenas do que foi e é para mim.kratos-gow3-desktop

Comprei God of War imediatamente a seguir ao lançamento por ter lido uma preview na velha (e tão boa) “Revista Oficial PS2”. Tal como toda a gente naquela altura, como boa jogadora de Playstation, duas publicações eram obrigatórias: PSM e Revista Oficial Playstation 2, que religiosamente comprava todos os meses. E ainda hoje as guardo. Numa publicação dessas, li uma preview de um jogo novo, desenvolvido por um estúdio ainda pouco ou nada conhecido, Santa Monica Studios e que seria um Action / Adventure situado no universo da mitologia grega. Acho que não precisei ler mais nada para saber que iria comprá-lo. E decidi que não queria ler nem mais uma linha sobre ele – não queria influenciar ou estragar nada da minha experiência, queria vivê-la em pleno.

Lembro-me exactamente da altura em pus o jogo na consola e a cara de Kratos aparece no ecrã, a música Vengefull Spartan começa a tocar e eu senti como que um choque eléctrico a atravessar o meu corpo. A música, o tom que o jogo me apresentou de início, a expressão de Kratos, foi como um choque de adrenalina imediata a anteceder o que aí vinha.

O jogo inicia com Kratos parado a beira de um precipício, desolado e derrotado. Esmagado pela dor, ouvimos Kratos dizer: “The Gods of Olympus have abbandoned me. Now there is no Hope!” E, aquele que seria o nosso herói, atira-se para o precipício de oceano que o espera para o abraçar no eterno beijo da morte. Ouvimos a narradora dizer-nos que Kratos se atirou numa tentativa de escapar à loucura, aos pecados do seu passado e aos pesadelos que o perseguiram incessantemente durante os 10 anos que dedicou a serviço dos deuses. Mas sabemos que nem sempre foi assim e, como acontece sempre que começamos uma história pelo seu possível fim, somos transportados para a verdadeira história 3 semanas antes.

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E este é o início de um jogo que, embora tenha “roubado” a sua mecânica a Devil May Cry, soube torna-la sua. Um jogo cujo design e estilo visual era algo sem paralelo na altura. Um jogo que elevou o conceito de acção, plataforma, puzzles, violência e…puro divertimento para o jogador, combinando todos estes aspectos em parâmetros nunca antes experimentados em consola. Intuitivo, desafiante, simples e….Bom de se Jogar. Parece trivial não é – mas pensem bem: quantas vezes jogam algo só porque: “Sabe bem”?

Mas o título deste artigo indica o que quero realmente falar. Atraiçoei-me a mim própria com o título que escolhi e roubei-me o efeito-surpresa. Quero falar de Kratos. Do que ele realmente É – pelo menos aos meus olhos.

É difícil encontrarmos alguém no mundo dos Videojogos que não saiba que Kratos é um General Espartano, antigo servidor de Ares, o Deus da guerra grego, cuja infâmia pelos seus actos o levou a ser conhecido como “O Fantasma de Esparta”. Nos tempos que liderava os seus soldados em batalha, e após quase uma fatídica derrota contra os Bárbaros, Kratos implora por Ares e pela sua ajuda na batalha sangrenta que ameaça terminar com tudo o que ele ama.

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Ares ajuda-o, dá-lhe as Blades of Chaos, armas que são acorrentadas aos braços de Kratos tal como este está neste momento acorrentado ao Deus que evocou. A batalha é ganha e com ela chega o preço: servir Ares – ser o seu exército. E aqui, o caminho para a perdição inicia. Ares é ganancioso – quer conquistar o Mundo e Olympus. Kratos, o soldado perfeito, é a sua arma indestrutível. Para cortar todos os laços que a sua “marionete” ainda terá com a Humanidade, Ares engana-o e leva-o a matar a sua mulher e filha. E aqui, a verdadeira história de Kratos e de God of War inicia: uma demanda por, aquilo que todos dizem, ser vingança.

Mas não para mim. Esta não é uma história de Vingança – é uma História de redenção. Para a maioria dos videojogadores, e em quase todos os artigos que li sobre God of War, Kratos é visto como uma personagem unidimensional, um “brutamontes” que usa violência excessiva, que não vê meios para atingir os seus fins. Uma personagem sem qualquer profundidade, um “One-liner”, obsoleto, Neandertal… todas estas palavras já foram utilizadas para definir o fantasma de Esparta.

Mas para mim não é nada disto. Kratos é das personagens mais bem conseguidas de sempre em videojogos e alguém que, enquanto psicóloga, mais me fascina observar. Kratos é, acima de tudo, um Soldado criado no agorges de Esparta, a “escola” militar a que os espartanos machos eram submetidos desde os 6 anos de idade. Perde o seu irmão pouco tempo depois, raptado por Ares por receio de uma profecia que anunciava que o Olimpo cairia às mãos de um soldado humano de rosto marcado. Kratos cresce e torna-se general. Lidera um exército e, no meio de tudo, tem apenas duas coisas que ama e guarda como sagradas: a sua mulher e filha. Ambas são mortas…às suas mãos…por um erro que ele jamais poderá corrigir – não há volta atrás. Como uma constante lembrança dos seus pecados, é marcado pelo Oráculo da cidade e o seu corpo fica, para toda a eternidade, coberto de cinzas. A sua pele, a lembrar-lhe para sempre, o monstro que se tornou. E é assim que o Mundo o vê: como um Monstro. E é assim que os videojogadores o vêm – é um anti-herói, um monstro desumano.

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Tal como disse, o primeiro instinto de Kratos não é a Vingança. Após o trágico fim da sua família, Kratos passou 10 anos ao serviço dos Deuses, numa tentativa de ganhar o seu Perdão.

Ele só quer fechar os olhos e esquecer os pesadelos que o atormentam há tanto tempo e que tanto o empurram à loucura. Mas os nossos actos têm consequências, e as consequências, aos olhos dos Deuses do Olimpo, terão que ser à medida dos erros. Kratos, apesar de o vermos no seu passado a gritar que perseguiria Ares, vemo-lo cada vez mais como derrotado. Desolado. É Athena que finalmente lhe pede que derrote Ares para assim poder chegar o tão ansiado Perdão. Sem este pedido, Kratos continuaria na sua jornada à procura da redenção que não chega e Ares não seria o seu objectivo principal.

Esta eterna memória dos terríveis actos cometidos contra aqueles que ama é brilhantemente ilustrada num dos últimos capítulos da história. No segundo acto da batalha final com Ares, somos transportados para uma dimensão onírica e alternativa, onde Kratos terá que lutar com uma horda de versões de si próprio que tentam matar a sua mulher e filha. Teremos que travar esta luta antes que o solo do nosso imaginário inconsciente se desfaça. E nestes minutos de batalha que parecem ao jogador como horas infindas, lutamos contra, aquilo que nos parecem ser, milhentas versões de Kratos vindas de todas as direcções. Sentimo-nos na pele dele – somos assoberbados e invadidos por aquilo que nos tornamos. A pior versão de nós mesmos vem para nos matar. E no fundo deste cenário, uma visão ilusória da sua mulher e filha, na mesma posição em que estavam quando morreram. Com o frenetismo de quem luta pela própria vida, lutamos para as salvar – ainda que seja só na imaginação. É finalmente chegada a hipótese de redenção. Quando notamos que as personagens que tentamos salvar estão a perder vida, Kratos faz o derradeiro sacrifício e abraça-se a ambas para lhes poder transmitir toda a vida que lhe resta. E, continua a lutar… salvá-as….salvar o humano que resta de si….é o que importa.

God of War

No final, mesmo bem-sucedidos, enquanto jogadores somos confrontados com o inevitável desfecho que tudo era apenas imaginação. Uma ilusão de Ares ao sacrifício mortal ao qual nos subjugou. Uma ironia e crueldade do Deus da Guerra.

A vingança chega e Kratos mata Ares. Para os que dizem que a vingança é o seu único objectivo, esta deveria ser suficiente. Kratos deveria ficar Feliz e saciado. Mas não é isso que ele quer. No final, depois da derradeira tarefa cumprida, Athenas nega-lhe a redenção que tanto procura e com jogos de palavras, engana-o mais uma vez. O Perdão chega – mas o final dos pesadelos e visões….Não. Mas é apenas isso que ele quer. A irradicação da memória que o tortura e enlouquece. Só quer esquecer o momento que, pela sua mão perdeu tudo o que Ama. E com isto negado, nada mais Humano em si existe.

Tal como Joel de The Last of Us, que no final da sua jornada tantos advogam que se tornou num vilão (por escolher salvar Ellie e não procurar a possível cura para a Humanidade), Kratos perde aqui, no momento em que procura o suicídio, toda a sua ligação à humanidade. Para Joel, não era importante salvar o Mundo se Ellie, aquela que se tornou o seu Mundo, não mais vivesse nele. Para Kratos, ele foi, por ser instrumento de alguém, o instrumento da sua própria loucura. E nem o Suicídio lhe é permitido.

Conseguem imaginar se isso nos acontecesse, numa qualquer situação aplicada à nossa realidade? Sermos a causa da perca do que mais amamos, ainda que de forma não intencional, e nada pudéssemos fazer para nos redimirmos? Nem sequer tirar a nossa própria vida nos fosse permitido? Sermos condenados a ser um eterno joguete nas mãos de seres que são os mandatários e júris da raça humana? Eu enlouqueceria e certamente, a Raiva e ódio seriam o meu caminho.

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Sim…eu entendo Kratos. Talvez isso diga muito da minha personalidade e Alma possivelmente perturbada. Certamente que sim. Sinto Kratos como a parte irracional e animalesca de mim.

Adoro vestir a sua pele e, por uns momentos, deixar que a sua crueldade descontrolada se torne na raiva e dor que transporto para fora. Mantém-me, de certa forma, sã. A jogabilidade frenética de God of War, os melhores “finishers” de combate que já vi num videojogo, as armas mais “cool” e impiedosas que já vi numa personagem, constantemente me relembram porque me tornei jogadora com a PS2 e porque ainda o sou até hoje!

Porque é Bom! Porque é Libertador! Porque os videojogos me transportam para outros Mundos! Porque revelam coisas de mim que nem sabia que existiam! Porque são Frenéticos, nos provocam injecções de adrenalina e nos fazem sentir Vivos!

Porque, quando mais nada resulta em más alturas da vida em que só nos apetece auto- destruir, posso sempre voltar para Kratos…eu sei que ele me entende….