Algumas pessoas acreditam no destino, outras no domínio total do livre arbítrio, e ainda há quem defenda que tudo funciona com base na lei da atracção. A mim custa-me acreditar em qualquer uma destas possibilidades, ou melhor, restringi-las a uma denominação. Independentemente das crenças ou simplesmente da natureza e razão dos acontecimentos, é inegável que há episódios que marcam. Assim foi o meu primeiro contacto com Dungeons & Dragons.

O nome não me era propriamente estranho, mas sim o seu conceito. Continuava presente aquela imagem de um grupo de nerds recatados a jogar no sótão, e também aqueles episódios de suposta magia negra que marcaram a história do jogo na década de 1980. Mas como gamer de longa data que sempre defendeu que os problemas da nossa sociedade não se devem a existência de jogos violentos, sabia que esses estereótipos não passavam de projecções de mentes demasiado pequenas para compreenderem o que realmente tinham diante delas.

A realização surgiu durante uma sessão de zapping no YouTube, e tal como qualquer outra sessão dessa natureza, dei por mim a ver vídeos que não tinham nada a ver com a pesquisa inicial. Um desses vídeos consistia num grupo de amigos sentados à volta de uma mesa com um extenso mapa no centro, onde rolavam dados e, cada um através da sua personagem, ia construindo uma história juntamente com aquele outro jogador que tinha criado aquele pequeno mundo. A aleatoriedade dos lances, a realização do perigo que é cometer um erro na pior das situações, a forma como cada jogador se entregava à narrativa e interagia com os restantes foram mais que suficientes para que eu me colasse àquelas três horas de vídeo, três horas que pareceram minutos. Tomei algum tempo para digerir tudo e por fim percebi que queria mais. A minha pesquisa levou-me até um programa chamado Critical Role, onde um grupo de voice actors se junta e joga Dungeons & Dragons. Lembram-se do quão falaciosos conseguem ser os estereótipos? Este programa só veio a reforçar essa mesma ideia. Desafio qualquer um a olhar para aquela mesa e apontar um típico nerd! Mas não nos afastemos do assunto que hoje nos traz aqui. Logo nos primeiros momentos daquele primeiro episódio me apercebi de que estava diante de algo diferente. Aquilo que me tinha cativado naquele outro vídeo mantinha-se, mas numa escala totalmente diferente, desde a mestria de Matthew Mercer como Dungeon Master à entrega única de cada um dos jogadores às suas personagens e à história. Nesse momento eu sabia que estava perante algo mágico.

Foi aí que os primeiros clicks começaram a aparecer. Para mim qualquer videojogo que me permita criar uma personagem e personalizá-la a ela e também ao seu equipamento, tem toda a minha atenção. “Querem dizer que aqui a minha personagem pode literalmente ser e parecer o que eu quiser?” Dei por mim a pensar naqueles primeiros momentos em que cada membro do programa apresentava as suas personagens. A minha imaginação começou a correr, ideias começaram a emergir e quando descobri que o tal Dungeon Master é responsável pela criação do mundo a explorar, a minha mente explodiu perante o extenso oceano de possibilidades. Sempre me dediquei à criação de pequenas histórias, vindo algumas delas a ocupar o meu blogue, outras a ganhar a forma de músicas, e umas quantas permitiram que vários livros fossem escritos. Contudo, por mais liberdade criativa que eu tivesse sobre mim, estava sempre limitado pela natureza do mundo que acabava por criar. Dungeons & Dragons destruiu essas barreiras. Nada podia estar escrito em pedra, tudo podia acontecer e, como tal, preparações tinham que ser tomadas.

Rapidamente surgiu a vontade de me juntar à magia, e rapidamente me percebi, dado ao facto de que vivo num meio relativamente pequeno, que a melhor forma de conseguir juntar sessões seria assumindo o papel de Dungeon Master. E assim foi, seguindo as dicas do último artigo que aqui deixei, arranjei os manuais (que li e reli), arranjei dados, primeiro virtuais, depois em papel, e depois em plástico (the real deal), tratei de fazer o meu próprio DM Screen e como é óbvio, criei o meu próprio mundo, servindo-me da plataforma Inkarnate para criar os mapas de todas as regiões.

Com o tempo surgiram os meus primeiros jogadores e, consequentemente, as minhas primeiras sessões. Aí pude testar aquilo que aprendi com cada episódio de Critical Role e logo na primeira sessão me apercebi de que ainda havia muito trabalho para fazer. O diálogo dos NPCs não saía de forma tão fluída quanto gostaria, os alcances vocais não eram assim tão ricos e o planeamento prévio necessitava de mais atenção ao detalhe. Ainda assim, após quatro horas exaustivas, o sentimento de realização era inegável, tal como o desejo e a ansiedade pela próxima sessão.

Mais tarde vim a descobrir que isto era mais que um jogo. Descobri que podia ser usado para ajudar os outros. Com o decorrer dos episódios, vários foram os espectadores que expressavam a sua gratidão ao grupo, ora por terem introduzido Dungeons & Dragons na chamada mainstream e acabado com a construção social que as tais mentes pequenas tentam sempre difundir, ou então por os terem ajudado a lidar com vários problemas, alguns dos quais envolviam o uso de Dungeons & Dragons como ferramenta de acompanhamento de familiares com Transtorno do Espectro do Autismo (nomeadamente Asperger) ou com problemas de ansiedade. Um outro click surgiu. A forte componente de role-play aliada à projecção constante, tanto dos jogadores como do Dungeon Master, e ao diálogo permanente tanto como jogadores como personagens, permitia a criação de um ambiente seguro onde vários episódios do mundo real podiam ser recriados e consequentemente permitir a aquisição e aperfeiçoamento de habilidades sociais. Rapidamente mergulhei numa nova pesquisa e rapidamente me apercebi que outros começavam a fazer o mesmo, defendendo inclusive de que o mundo seria um lugar melhor se todos nós jogássemos um RPG pelo menos uma vez na vida.

Há algo de belo na relação jogador/personagem, principalmente em casos como o dos membros de Critical Role, cuja campanha dura há três anos e todos continuam com a sua criação inicial. Com o tempo, deixa de ser algo mais que palavras e números numa folha de papel. Torna-se parte do jogador, um amigo, um ente querido, alguém que se quer proteger, e cuja morte, seja por causas naturais ou a consequência de uma calorosa batalha, pode arrasar emocionalmente qualquer um.

Todos nós precisamos de um escape de vez em quando, principalmente naqueles dias menos bons. Assim é a natureza desta nossa realidade, pois se tudo fosse perfeito, não precisávamos de um escape para nada. Pessoalmente, tenho os meus videojogos, as minhas músicas, os meus filmes e séries, leio e escrevo livros, mas agora tenho algo mais, tenho um mundo que precisa de um outro tipo de atenção. Sei que os meu jogadores estão agora mesmo a começar a sua nova aventura como discípulos de Vecna e que a morte do líder da guilda dos ladrões da vila mercante de Alassandria às suas mãos (e cujo corpo foi devorado por um deles), não está propriamente esquecida. A aventura deles está longe de estar terminada, tal como a dos restantes habitantes do mundo de Dosluvi e está nas minhas mãos ajudar a contá-la… resta-me perguntar, estão preparados para o que o futuro nos reserva?