Provavelmente o maior sonho de qualquer fã é o de conhecer o objecto dessa adoração. Seja um actor, um músico, um escritor, um game designer ou um futebolista, a concepção relativamente recente de “fanatismo” tem como o seu apogeu o acto de partilhar o mesmo espaço e/ou interagir com a figura do ídolo. Mas acredito que existe um patamar seguinte, raríssimo de ser concretizado, que é a possibilidade do fã poder um dia trabalhar lado a lado com o seu ídolo. Um pouco o que aconteceu com Tim “Ripper” Owens que passou de um banda de esquina de covers de Judas Priest a ser vocalista da banda em substituição de Halford. No caso dos videojogos, um mercado relativamente jovem onde o conceito de “celebridade” é relativamente curto, o mais próximo que existe deste patamar é o de trabalhar em séries que adorámos e/ou com criadores cujo trabalho seguimos.
(Existe ainda um patamar mais extremo, patológico, que é o da obsessão de casar com o ídolo, mas penso que isso já é ir longe demais, até para um Rapaz-Ventoinha).
Seguir (e idolatrar até) o trabalho da Nintendo dificulta e muito o patamar do qual falava (o do trabalho, e não do casamento). Para além dos óbvios problemas geográficos e de língua, a Nintendo tem uma estrutura interna de confiança perfeitamente sólida no qual acredito que seja muito difícil penetrar, para além da bem-conhecida política de hiper-protecção das suas propriedades intelectuais. O que significa que sonhar poder trabalhar no ocidente para produzir alguma das séries do qual tanto gostamos nunca passará disso mesmo para quase todos nós: um sonho.
Com tantas reticências que tinha perante o anúncio de Super Mario Maker, sobre o qual escrevi aqui o ano passado, à medida que fui contactando com o jogo deixei desvanecer todas as minhas dúvidas. Afinal, este era acima de tudo um produto feito para fãs, e em segunda abordagem um produto obrigatório para todos os putativos game e level designers pelo mundo fora.
Se Super Mario Maker se tornou um fan favorite cá em casa, passando inclusivamente a ser não só o jogo com mais horas jogadas na Wii U, como o primeiro level editor que o meu filho alguma vez utilizou na vida, no qual a dupla pai-e-filho uniam esforços na divisão de tarefas (o filho criava, o pai tentava ultrapassar o nível), o anúncio do port de Super Mario Maker for Nintendo 3DS deixou-me um misto de dúvidas. Olhei para Super Mario Maker a priori como um level editor glorificado e cedo acabei por perceber que esta foi a melhor forma de honrar e dissecar trinta anos de definição dos jogos de plataformas e do próprio mercado dos videojogos, em quase nos era possível sentir na primeira pessoa os desafios que Miyamoto e a sua equipa passaram ao longo destas três décadas. Trazê-lo para a portátil da Nintendo era afinal uma questão de tempo.
Mas todo este sentimento de partilha ficava confinado ao recato do lar, ao interface perfeito para Super Mario Maker que são as características únicas da Wii U e que justificaram as tremendas vendas que o jogo teve. Porque estava mesmo ali à nossa mão a possibilidade de cumprir-se esse sonho de fã, o sentimento de pertença e criação de algo que nos definiu culturalmente e cujo peso emocional sobre nós é tremendo e incalculável. Sabendo de antemão que a probabilidade de algum dia vir a trabalhar com a Nintendo num jogo de Super Mario é próximo de zero, esta é a forma possível que temos de nos sentirmos mais próximos dos nossos ídolos, e de sentirmos, ainda que dentro das constrições racionais devidas, que parte da nossa criatividade e engenho serviram e contribuíram para algo que tanto amamos. Com o devido afastamento é o equivalente musical de adicionar uma gravação da minha voz e colá-la a fazer um dueto que não existe com alguma das muitas vozes que idolatro, algumas delas já partidas.
Trazer Super Mario Maker para a 3DS não só faz sentido como nos deixa a desejar que o pacote de lançamento do jogo na Wii U trouxesse já uma versão para a consola portátil (à semelhança dos lançamentos simultâneos de Super Smash Bros. para as duas consolas). É que poder criar níveis de Super Mario na esplanada, a beber um café, é inegavelmente uma experiência que muitos de nós nunca esperou em ter, mas que ao fazê-lo sente que aquele sentimento de partilha entre nós e os nossos ídolos não tem de ficar encerrado em casa, às limitações de espaço da nossa sala e da nossa Wii U. Podemos trazer esta ponte de criatividade para qualquer lugar.
Ao final do dia sabemos que estes níveis por nós criados pouco ou nenhum impacto tenham perante os nossos ídolos, e que esta ideia fictícia de trabalhar lado-a-lado de quem admiramos da Nintendo não passa disso mesmo. Mas parafraseando Thomas Grey, que escreveu no Séc. XVIII num poema seu a ideia de que “ignorance is bliss”, há algo profundamente aconchegante de mantermos esta ilusão, e a esperança de que um nível nosso seja tão mecânica e criativamente inovadores que os nossos ídolos se sintam compelidos a convidar-nos para trabalharmos com eles*.
Super Mario Maker é muito mais do que um level builder, mas é uma estrada directa para uma ligação inexistente mas credível entre nós e os nossos ídolos. Mais do que uma ferramenta de criação de níveis, é acima de tudo uma fábrica de sonhos, onde o fã ascende acima da sua condição e se torna ele mesmo o criador.
* lembro a história contada por David Dino na entrevista que lhe fizemos sobre a forma como foi trabalhar em Little Big Planet 3, após ter-se evidenciado durante anos na comunidade online de fãs e criadores de níveis da série.