Numa altura em que os jogos procuram cada vez mais a credibilidade através de narrativas de inspiração cinematográfica, é legitimo perguntar-nos se estas tentativas intermitentes de adaptar jogos para o grande ecrã ainda fazem sentido. Criar uma extrapolação narrativa de um universo abstrato é acrescentar algo ao objeto adaptado.

Casos como o futuro reboot do Tomb Raider deixam-me apreensivo. A Saga da Lara Croft, inspirada pelos filmes do Indiana Jones, eles próprios inspirados nos filmes de aventura dos anos 30, tem acrescentado cada vez mais elementos de dramatização para projetar uma experiência cinematográfica dentro de um videojogo e beneficiar com isso da associação entre a narrativa (cinema) e a interatividade (jogo). Sem esse fator diferencial Tomb Raider, num contexto puramente cinematográfico, não passa de um produto genérico. The Last of Us é um grande jogo narrativo na sua plataforma. No contexto do cinema seria só mais um (bom?) filme de Zombies. As limitações técnicas já não são uma desculpa. As personagens já não estão limitadas ao silêncio e podem expressar-se através da expressão oral e facial de atores profissionais. O critério de exigência narrativa tem sido desvalorizado perante este pequeno milagre tecnológico e a maioria dos nossos jogos são essencialmente pastiches de grandes êxitos do cinema. Não sabemos até quando isso passará despercebido.

Qual é o contributo narrativo de um Assassin’s Creed? Para entender isso é preciso olhar para a génese da saga. Aquilo que era inicialmente para ser mais um Prince of Persia vai construir a sua singularidade através de elementos culturais bem sucedidos na altura. O primeiro jogo da saga é lançado em 2007, 4 anos depois de Dan Brown conhecer um sucesso mundial com o seu Da Vinci Code, um romance ligeiro que desperta paixões pela sua temática “conspiração católica”. Tal como no caso de Assassin’s Creed, as personagens desvendam um segredo milenar perseguindo os indícios do passado numa simetria com o presente. Assassin’s Creed, consciente da necessidade de uma interatividade entre os dois mundos, cria uma ponte através de um engenho narrativo: o “Animus”. Este é o elemento mais distinto da saga e, paradoxalmente, o mais controverso pois é frequentemente considerado um fator que prejudica a imersão. Ser um jogador que manipula uma personagem que “joga” ao seu antepassado é uma gamingception que cria uma densidade muito superficial. É no entanto esse o elemento mais original da saga… Isso e Parkour.

Nada que nos pudesse deixar muito esperançoso até ser anunciado o realizador Justin Kurzel acompanhado com os seus dois atores de eleição: Michael Fassbender e Marion Cotillard. O filme anterior do realizador australiano, McBeth, apesar de ter sido um flop de bilheteiras foi para mim um dos melhores filmes de 2015. Teremos nós aqui o primeiro filme baseado num videojogo de grande qualidade (para além do Super Mario Bros)? O consenso crítico discorda categoricamente. Tentei descortinar as opiniões dos profissionais antes do visionamento. O que eu pude concluir é que o tópico central das avaliações encosta sistematicamente a responsabilidade para o lado do jogo: É estúpido? É normal, é um videojogo.

Já dediquei a minha longa introdução a este preconceito. Só me resta repor alguma justiça perante esta bengala crítica complacente: Assassin’s CreedThe Movie” não é mau nem por ser a adaptação de um videojogo nem por basear-se na franquia conspiracionista da Ubisoft.

Assassin’s Creed é um péssimo filme por ser o equivalente cinematográfico de um Rickroll vendido 7 Euros o bilhete. Não é fácil abordar esta aberração. Sabemos que deu merda mas custa processar a multiplicidade de variáveis que conduzem a tamanho desastre. Vamos à autopsia… Sem spoilers ao filme…

Assassin’s Creed não tem história 

waaa…

Numa certa altura do filme, o protagonista principal interpretado por Fassbender, incrédulo após uma sucessão de interações com outros protagonistas exclama para si próprio: “What the fuck is going on?”. Esta frase resume por si só a experiência do expectador ao longo de quase duas horas de um guião que, apesar de bastante simples, é incompreensível na sua abordagem. Uma espécie de uncanny valley das interações humanas e de acontecimentos que só consigo justificar formulando a teoria da presença de um extra-terrestre à paisana na equipa de guionistas da 20th Century Fox.

Os acontecimentos do filme recuperam a maior fatia contemporânea do primeiro episódio conseguindo piorar aquilo que já não era particularmente atrativo no contexto do jogo. O conteúdo não vai para além da sinopse.

Cullum, um prisioneiro condenado a morte, é raptado após o simulacro da sua execução pela organização Abstergo. O objetivo desta fundação misteriosa é acabar com a violência no mundo retirando à humanidade o seu “gene do livre-arbítrio”. Para concretizar esse plano estes herdeiros dos Templários capturam descendentes dos Assassinos, os eternos defensores da liberdade de não acordar cedo ao Domingo para ir à missa, de modo a conseguir desvendar os segredos do passado através do Animus e recuperar a Maçã de Éden, objeto lendário capaz de subjugar qualquer ser humano. Cullum é a última peça do Puzzle e é através do seu antepassado Espanhol do Século XV que revisitamos os acontecimentos que levaram ao desaparecimento do artefato.

O primeiro erro evidente é que 80% do filme decorre fora do passado algo que é o exato oposto do que acontece nos jogos. O Foco de atenção do jogador, em qualquer jogo AC, passa por visitar paisagens de tempos perdidos e redescobrir grandes acontecimentos históricos dentro da grelha de leitura revisionista da eterna luta entre Templários e Assassinos. Trepar os edifícios clássicos da Itália Renascentista ou da Jerusalém das cruzadas tem obviamente mais charme do que passear pelos corredores cinzentos da Abstergo. Os responsáveis pelo filme não terão partilhado desta minha opinião…  Certo. Ir pela via menos evidente não condena o filme ao fracasso e era possível melhorar a narrativa do Desmond. O problema é que faz exatamente o oposto: Piora tudo.

No jogo Desmond é aliciado por parte de uma organização aparentemente bem intencionada e vai criando com as pessoas que encontra uma conexão emocional que passa tanto pela atração física como por amizades forjadas pelo bom humor. No fim – spoiler ao jogo – Desmond descobre que a organização pertence aos Templários, um grupo que ele aprendeu a odiar através através da sua simbiose com o seu antepassado. É um twist que faz eco ao twist da narrativa do seu antepassado. A força deste recurso é aqui deitada ao lixo para ser substituída por… Nada. Rigorosamente nada.

A Abstergo do filme é uma organização explicitamente templária e maléfica. Não há aqui qualquer revelação. Resumidamente, Cullum está “dividido” entre optar por enfiar a carapuça ou continuar o seu incompreensível niilismo juvenil. O Contributo histórico do passado Espanhol é zero. Aguilar, o antepassado, tem uma backstory genérica que se adivinha de forma subliminar nas sequências de porrada. Em nenhuma altura as duas personagens se encontram tanto emocionalmente como intelectualmente o que é algo que o jogo consegue fazer à sua maneira. O passado resume-se a uma espécie de missão de videojogo sem qualquer substancia histórica e sem metas para além do fortalecimento pessoal do Cullum e o desvendar daquilo que nunca chega a ser um enigma.

É o equivalente B movie da minha vida quando perco as minhas chaves. Vou repetindo as minhas ações, troco impressões aos berros com os que testemunham a minha aflição e no fim aquela merda estava no meu bolso. Nada de relevante foi partilhado para além do processo que me levou a concluir que tinha as chaves no bolso.

Assassin’s Creed não tem qualquer contributo emocional e filosófico. Quando se atreve a formular algo nesse aspecto o raciocínio fica gago e só consegue sacar-nos, na melhor das hipóteses, um ataque de riso.

O Absolutismo teimoso dos Templários é caricatural e sem qualquer subtileza. Os Assassinos limitam-se a ser guarda-costas acríticos na sua função de protetores de fruta. A responsável pelo projeto, interpretada por Marion Cotillard, esboça a ideia de que a violência é um fator hereditário que pretende curar ao estilo Laranja Mecânica mas com argumentos dignos de memes motivacionais brasileiros. Neste caso o nosso Alex é uma personagem completamente incerta. O homicídio da sua mãe pelo pai Assassin parece ter desencadeado uma vida pouco saudável mas é algo que nunca chegamos a conhecer muito bem… Quanto mais perceber. Isto leva-nos ao problema seguinte.

Assassin’s Creed não tem personagens 

I have no idea what I’m doing

Os verdadeiros reféns do Assassin’s Creed não são os Assassinos da Abstergo mas o all-star cast de atores conceituados forçados a debitar non-sense com cara séria. Muito séria. Assassin’s Creed é um filme com uma premissa absurda mas que aborda tudo com uma solenidade que vai muito para além da tonalidade do jogo.

Perdidos nas suas personagens, os atores vão fazendo os possíveis. Uns desistem, como é o caso da Marion Cotillard que parece um peixe fora de água e mantém estoicamente a mesma expressão e tom de voz independentemente das circunstâncias. Outros, como Fassbender, tentam fazer o que podem com o que têm projetando imensa emergia nas suas interpretações. O resultado assemelha-se ao tipo que se esforça imenso para brilhar na peça de teatro da Carochinha da sua escola primária. Embaraçoso. O principal problema é que não há aqui qualquer tentativa de character development logo as personagens, sem terem personalidades, tornam-se pouco verosímil.

Não sabemos quem é o Cullum. Não se entende porque chega a ser condenado à morte e o que isso diz sobre ele.  Não sabemos quais são as suas motivações e os acontecimentos subsequentes… Cada personagem transmite uma ideia de arquétipo mas o seu propósito essencial é o de debitar explicações pontuadas de filosofia barata. Sem personagens não há envolvimento emocional. Sem envolvimento emocional não há interesse. Sem interesse não dá para se manter acord… ZZZzzZZZzz

Assassin’s Creed não tem cinematografia 

Let’s kill that contrast!!

Utilizo aqui a palavra cinematografia um pouco abusivamente mas o filme é no seu todo um produto falhado. A fotografia horrenda oscila entre o cinza alcatrão e o sépia instagram. A edição não tem qualquer fluidez e cria autênticos buracos narrativos que dão a entender que muita coisa poderá ter sido retirada do filme. Já referimos essa problemática no caso das personagens mas também existe na ação. As personagens aparecem e desaparecem consoante o que for mais conveniente, navegando a seu ritmo para objetivos que nunca nos são explicados. O único ponto positivo do filme, a coreografia, nunca é parte integrante do desenvolvimento das peripécias da ação. O filme tanto se foca num segmento de parkour para fugir de sabe se lá o quê como despacha pontos essenciais da história em menos de 10 segundos. O fim de Assassin’s Creed consegue nessa matéria ultrapassar todos os limites da decência.

Voltando à cinematografia, os ângulos de câmara são demasiado fechados para transmitir qualquer escala à ação resultando em momentos de claustrofobia até em espaços supostamente abertos. As poucas vezes em que o filme tenta alargar o seu sujeito, fá-lo através do recurso a uma águia que, independentemente da minha sensibilidade futebolística, transmite não só pobreza de recursos como uma vontade constrangedora de parecer cool.

Ser “fixe” é aliás uma das grandes preocupações deste filme e algo em que falha redondamente. O Gravitas geral e grão obscuro de todos os elementos são tentativas de apelar ao excesso de zelo das adolescências mais conturbadas. Esta postura condescendente, recorrente nas adaptações de jogos, é um atestado de burrice que magoa. Resident Evil já vai no seu sexto filme e Hollywood continua a apreender o objeto-jogo pior que um octogenário a mexer no Facebook. Não há justificação nenhuma para os comic books terem conseguido algo que os videojogos persistem em falhar.

Finalizemos este laborioso exercício de análise com uma menção para a inexistente banda sonora, algo que a Ubisoft sempre soube valorizar através dos seus trailers do jogo. Recordo-me vagamente de um pseudo-rock anacrónico numa sequência de passado… O resto caiu-me no limbo auditivo.

Ninguém merecia isto. Nem os criadores nem os espectadores. Ninguém.