Um role-playing game sem role play é exactamente a mesma coisa que comer batas fritas sem sal, não faz sentido nenhum. Neste tipo de formato procuramos assumir o papel de uma personagem (ou personagens) por nós criada. Aqui, a diversidade de possibilidades é directamente proporcional à fertilidade da nossa imaginação. Elfos, anões e tieflings, guerreiros, feiticeiros e arqueiros, são apenas a ponta do icebergue no que toca a dar os primeiros raios de vida a uma personagem. Seguir-se-ia a história dela, o que a traz a este mundo e o que ela pensa dele, que momentos da sua vida a marcaram e até que ponto o fizeram. Podemos sempre recorrer aos clichés do justiceiro solitário à procura de vingança pela morte da família, ou aquele aventureiro mulherengo cujo charme lhe concedeu centenas de histórias e algumas “companhias”. Só neste parágrafo já temos algum material para começar a nossa pequena aventura.

Tendo a estrutura, ou seja, a personagem criada, falta agora dar-lhe vida. Sim, é verdade que a sua backstory e os vários aspectos da sua personalidade estão assentes no papel, mas tal de nada serve se não os levarmos a sério. É verdade que pode intimidar um bocado, principalmente quando a timidez e o receio são muitos, mas se toda a gente ajudar, é só uma questão de tempo até que tudo comece a fluir. As pequenas coisas contam, seja o Dungeon Master falar através de um NPC ou um outro jogador insistir para uma conversa a sós in character para discutir algo. Em momentos mais críticos, como o golpe final a infligir contra aquele boss que tem amedrontado a equipa durante tanto tempo e que agora, após uma exaustiva batalha, se encontra à sua mercê, o Dungeon Master pode, e deve, recorrer ao slogan que ficou célebre pelo próprio Matthew Mercer e perguntar ao jogador responsável por esse mesmo golpe “how do you want to do this?” (como é que queres fazer isto?). A adrenalina que se acumulou durante aquele que por si só já foi um caloroso confronto, aliada à liberdade que é concedida ao jogador de decidir o destino de um formidável inimigo, são ingredientes suficientes para que o clímax seja absoluto e que o jogador em questão, através da sua personagem, traga para a mesa aquilo que lhe vai na alma nesse preciso momento.À medida que o Dungeon Master vai descrevendo o que se passa à nossa volta, À medida que vamos passando mais tempo nesta nossa aventura e com a nossa personagem, iremos começar a sentir o peso da nossa espada numa mão, o do escudo na outra, e nas nossas costas o peso da esperança depositado por um reino que confia em nós (ou simplesmente motivações puramente egocêntricas, também funciona).

Já num artigo anterior apontei que tanto Dungeon & Dragons como outros tabletop role-playing games têm um excelente potencial no que toca a acompanhar pessoas com Transtorno do Espectro do Autismo, nomeadamente Asperger. Estamos a falar de casos de pessoas cuja maior dificuldade reside em compreender o mundo e as pessoas que os rodeiam algo, que, consequentemente, dificulta qualquer forma de interacção. Através das dinâmicas de role-play aqui presentes, é-nos possível recriar situações do nosso quotidiano, construindo a partir daí um ambiente seguro onde é possível treinar vários tipos de interacções e aperfeiçoá-las para depois serem devidamente usadas no mundo real.

Em jeito de conclusão, podia simplesmente fazer um apelo final para a boa prática do role-play e de tudo aquilo que tal permite, mas isso seria demasiado fácil.

Encontras-te algures numa densa floresta, densa ao ponto de praticamente não conseguir deixar passar a luz do luar. A erva dobra-se e paus partem-se silenciosamente sob os teus silenciosos passos. À tua frente duas tochas tornam-se visíveis. Aproximas-te com cautela e por fim consegues ver que estão a ser seguradas por dois guardas que trocam animadas palavras entre si. Pela cor dos uniformes e pelo brasão em forma de abutre consegues apurar que são homens do Barão Adrien Kaleigh, o homem que tratou de orquestrar o rapto da tua filha Minay. A investigação que levaste a cabo nestas últimas semanas aponta que é aqui que ela está. É agora ou nunca. Como é que queres fazer isto?