Pais-Galinha é uma rubrica dedicada aos desafios da nossa geração enquanto jogadores e pais (e mães, ainda que o substantivo masculino plural seja aqui usado como na língua portuguesa como forma de abraçar os 2 géneros em sentido colectivo). Retroactivamente vamos adicionar esta categoria a alguns dos nossos textos publicados nestes 5 anos de Rubber e que se enquadrem no tema da parentalidade e dos videojogos.
Foi com imenso prazer que vi chegar às livrarias portuguesas o livro Cria o teu jogo de computador, da autoria do Manuel Menezes de Sequeira e do Nélio Códices, e um ainda maior prazer o de poder partilhar o palco com eles numa amena conversa aquando da apresentação do projecto no auditório do Lisboa Games Week.
A linguagem de programação que serve de base para este livro tão didático quanto lúdico é o Scratch, uma linguagem criada pelo MIT como pedra basilar de uma aposta no raciocínio e no pensamento lógico desde tenra idade, e que tem provado ser uma brilhante ferramenta pedagógica nesta mais de uma década de aplicação prática.
Ora eu, um perfeito nabo em programação do qual o pouco que sei é de CSS, não podia deixar de me sentir entusiasmado com o conceito e o fundamento por trás do Scratch, motivado pela forma apaixonada como o Manuel e o Nélio mo explicavam em palco. Paixão essa ainda mais perceptível na concepção do seu livro.
Mas o meu entusiasmo não se centrava maioritariamente em mim, mas no meu filho, que com quase 4 anos é já um gamer apaixonado e irredutível. Perceber que tanto a linguagem Scratch, mas acima de tudo a forma como o Cria o teu jogo de computador foi concebido, demonstra que este momento de conhecer uma ferramenta diferente não é apenas fait divers como muitos com os quais infelizmente nos vamos cruzando. Nem algo que deva ser simplesmente atirado para a criança (e não só) como uma prenda qualquer. A oportunidade que se cria para pais e filhos poderem passo a passo aprender e desenvolver um jogo juntos demonstra mais uma vez a verdadeira revolução que os videojogos podem trazer à pedagogia, como motivadores de aprendizagens e de apreensão de ferramentas adicionais que em tanto podem enriquecer a geração dos nossos filhos, e a nossa, por extensão.
O Scratch tem diversos apontamentos de pura genialidade, mas penso que a maior de todas é o facto de não ter constrições linguísticas. Se a semântica (usualmente inglesa) pode ser detractora da aprendizagem não só para crianças mas para adultos menos lestos na anglofonia, o facto do Scratch ser perfeitamente adaptável à língua de cada um e em que a construção linguística da programação é feita, no nosso caso, com palavras da Língua Portuguesa, confere-lhe um grande teor de acessibilidade, diria, nunca antes testado.
É óbvia a mudança de paradigma tecnológico em que vivemos, e decerto que o início da paixão pela programação que os dois autores desenvolveram pela informática desde tenra idade estava rodeada por circunstâncias culturais distintas. A existência nos dias de hoje de linguagens de programação simples, tão simples que quase servem de mote para Achas que sabes programar melhor que uma criança de 5 anos? e que transformam o game development como uma realidade e um caminho plausíveis desde a infância. Decisões essas que podem ser partilhadas pelos pais, mesmo que o seu background académico seja distante da Informática, como é o meu caso.
Mas não só pela paixão que tenho pelos videojogos passaria ao lado de caminhar nestes primeiros passos de game development com o meu filho. Esse entusiasmo advém sobretudo dessa actividade ser tão enriquecedora e tão relevante como apresentar-lhe os filmes, as séries e os livros que considero serem essenciais.
Da minha parte não posso conter a ansiedade para daqui a algum tempo poder ler e aprender com o livro na companhia do meu filho, antecedendo os muito high-5s! de alegria à medida que formos vendo o nosso jogo simples a ganhar vida e a tornar-se cada vez mais isso mesmo… um videojogo, feito num momento de partilha entre pai e filho.
Sensação similar já passada pelo game developer Richard Hill-Witthall, co-criador do jogo Best Buds vs Bad Guys, um simpático side scrolling shooter indie que nos chegou à redacção há poucas semanas, e que à falta de conhecimento de ser caso único, aqui fica como um excelente caso do quanto o game development pode ser perfeitamente um elemento de aproximação familiar.
Refiro co-criador ao enunciar Richard visto que Best Buds é fruto do seu trabalho conjunto com o seu filho Lucas (com 10 anos no início do desenvolvimento do jogo). Best Buds não é apenas a homenagem de pai e filho aos jogos que aquele jogou na sua infância e que tem mostrado a este como objectos verdadeiramente essenciais da história dos videojogos. Best Buds é quase auto-biográfico, representando a excelente relação que pai e filho têm um com outro, na extrema cumplicidade de se considerarem “best buds”, e de se representarem artisticamente como protagonistas do jogo que ambos criaram.
No caso de Best Buds vs Bad Guys o game development vem ultrapassar uma barreira adicional, para além das óbvias geralmente imputadas sobre game development. Tanto Richard como Lucas estão dentro do espectro autístico e sofrem ambos de Síndrome de Asperger, e o game development não foi só a forma de partilharem e homenagearem uma paixão comum, mas também a materialização do ponto de vista único que têm sobre a vida. Para além da utilização de uma ferramenta criativa para ultrapassar um “problema” das suas vidas, e que podem hoje orgulhosamente partilhar com as vidas e que está à venda no Steam e outros retalhistas digitais.
O mundo avançou muito desde a nossa infância, por muito que vejamos alguns retrocessos assustadores. Qualquer pai ou mãe que seja apaixonado por videojogos reconhece o sentimento de orgulho incomensurável que é partilhar esta paixão com os nossos filhos, que é algo que pelas circunstâncias óbvias não aconteceu connosco e com os nossos pais. Mas esta paixão e esta partilha podem ir ainda mais longe, quer seja nas muitas workshops que o Manuel e o Nélio promovem, quer seja por seguir as instruções e a aprendizagem do seu livro, acredito que em muito pouco tempo esta ligação entre videojogos e pais e filhos possa ser edificada para a posteridade, muitas vezes com um título simples como “O nosso primeiro videojogo” que tantas agradáveis memórias trará daqui a alguns anos, como quem folheia os velhinhos álbuns de fotografia e viaja instantaneamente para outra vida.