Já cantava Carlos do Carmo “Parecem bandos de anormais à solta, os putos, os putos…” (aproximadamente). Naquele tempo os compromissos do ego eram suficientemente flexíveis para permitir que uma relação sexual pudesse culminar na criação de um ser humano miniatura que viesse impor as suas próprias necessidades e caracterizar parte da realidade cultural coletiva. Se, por um lado, as perspectivas demográficas atuais não são animadoras, nada justifica a dimensão do eclipse cultural provocado pela revolução comercial em curso e a queda de um verdadeiro império: o segmento infanto-juvenil.

O universo da pop culture é para a criança do século XXI uma action-figure por desembrulhar enjaulada entre os vidros de uma vitrine Detolf. A produção alegadamente infantil está cada vez mais indissociável dos critérios dos adultos tanto pelos conteúdos provenientes da nossa infância como pela inevitável colocação de elementos que possam de alguma maneira cativar a nossa sensibilidade de adulto durante o visionamento. Há algo de profundamente errado nessa abordagem que me suscita uma dívida moral por não devolver a infância tal como a encontramos quando a tivemos.

Fomentar a perplexidade dos elementos reprodutores do lar não deveria ser um privilégio reservado à minha geração. Quando o Gohan levou uma surra MelGibsoniana do tio Radditz ninguém se preocupou em saber a opinião do meu pai ou se tal correspondesse às suas expectativas nostálgicas. A nossa relação com o entretenimento não tinha nenhum intermediário para além da contribuição financeira. Os atores do mercado encaravam o adulto como o vendedor de balões na festa da aldeia: Uma carteira com pernas. O nosso pequeno clube das 17h e dos Sábados de manhã representava um código cultural comum em que o velho era xunga e os objetos correspondiam à imaturidade dos nossos desejos. As nossas publicidades eram feitas de rufias derrotados por um miúdo franzino armado com um objeto com pilhas não incluídas. O Adulto, desadequado, era para ser humilhado dentro dos critérios da nossa tradição incestuosa grego-latina através de um golpe de Édipo que envolvia música “fixe” e desportos “bué radicais”.

O Crescimento do poder de compra de pais ainda comercialmente pudicos deixou um espaço orçamental significativo capaz de dar asas à uma relação privilegiada entre criadores e consumidores da birra. Os videojogos nascem precisamente nessa altura e são rapidamente direcionados para a função de brinquedo sofisticado. Engana-se quem vê isso como algo vergonhoso. É um elogio.

Tartarugas Ninjas, Transformers, Dartacães e mais umas quantas macacadas nunca teriam tido a possibilidade de existir ou pelo menos criar o mesmo impacto nos dias de hoje. Criar para os miúdos é assinar um compromisso onde a diversão e novidade são elementos essenciais. Criar para adultos ou criar para crianças com o compromisso da aprovação adulta resulta demasiadas vezes na reformulação higiénica de algo que já existiu.

O Primeiro Império

A força do nosso movimento terá sido demasiado grande para preservar a beleza caótica da inovação pelo gosto dos mais novos. Numa sociedade onde a transição etária envolve pouco mais do que um magro poder de compra e uma necessidade compulsiva de consumir, tardamos em desertar o nosso lugar de putos trocando a aspiração de tipo com BM pela de filho do dono de uma Centroxogo. Arrastamos toda uma indústria connosco, monopolizando as temáticas e deixando para os mais novos o lado rasca de um mercado anónimo que poderá vir-se a tornar o “gaming” do futuro. Tal como um puto a ver um youtuber-dono exclusivo do comando, a participação desejada reduz-se ao de espetador passivo. No entanto é com estes mesmos miúdos que se enchem pavilhões em troca de migalhas: O potencial económico da infância mantém-se apesar de tudo inalterado.

Daí que ver todo o discurso comercial de uma das últimas empresas ainda minimamente comprometida com esse segmento ser desviado para este novo paradigma deixa-me moderadamente irritado… Sim estou a olhar para si Senhor Nintendo.

Tendo em conta a quantidade de plataformers produzidos pela firma do picheleiro e as suas temáticas habitualmente compatíveis com todas as faixas etárias, é frustrante ver prolongar-se a deriva de marketing sénior iniciada com a Wii. Essa estratégia poderá ter surtido efeito na altura mas no contexto atual e pelas características do Switch não passa de uma tentativa forçada de imitar os vizinhos. Parafraseando a Rachel McAdams do Google imagens: “It’s not going to happen”.

Vejamos, todo o material comercial do Nintendo Switch tem-se focado em situações completamente improváveis de trintões solteiros em viagem de negócio, a praticarem desportos de ruas, a animarem festas em rooftops ou a passearem o seu majestoso dogue alemão.

https://www.youtube.com/watch?v=9j-z7bBSHFU&%20

4 Minutos de tipos que nunca comprarão a consola, 100% kids free

Esta fantasia pensada para projetar um semblante de dignidade ao consumidor é uma ilusão que só consegue atingir a simpatia bovina do colecionador de amiibos. Está a pregar-se aos convertidos enquanto o lado mais cético do mercado disseca habilidosamente todas as falhas destes 330 Euros de tecnologia.

Sabem que não se importa com um catalogo mais fraco no dia de lançamento? Quem consegue racionalizar uma autonomia de 3 horas? Quem não faz sequer ideia da diferença entre uma resolução de 720p e 900p ou do que representam frame rates de 30? PUTOS, putos caralho! Putos que adoram levar o tablet para todo o lado, que ainda têm a liberdade social para desfrutar de uma sessão ao ar livre de um jogo com motion controllers sem parecer um anormal de merda. Os Putos fizeram uma “portátil” tão absurda como a Game Gear acontecer. Os Putos fizeram a NES, os putos fizeram a SNES, os putos mantiveram o barco da Wii e todos os que lá quiseram rentabilizar o seu shovelware, os putos aceitaram pagar por miniaturas de plástico compatíveis com jogos antes destas serem a representação de personagens retro, os putos mantêm o mercado do tablet ainda vivo quando este já deveria ter morrido…

Apesar disso a orientação comercial dos videojogos aproxima-se da unanimidade, primeiro por ter optado por um discurso indireto (para os pais) e agora por retirar as crianças da equação. Poderia aceitar-se representações onde pais e filhos partilham um momento de diversão em conjunto… Não colocar qualquer criança em nenhum dos materiais promocionais apesar da perfeita adequação é antagonizar o papel das crianças.

https://www.youtube.com/watch?v=9dyMuObFeHU

Anos 80 

https://www.youtube.com/watch?v=j7p47TOmicQ%20

30 anos mais tarde

Com a chegada das PS3/360 os jogos de plataformas perdem terreno perante a ascensão do FPS.  Embora essa substituição se efetue principalmente por motivos de gameplay, estes dois géneros, por terem estilos de narrativa tradicionalmente diferentes, vão provocar a extinção dos universos coloridos cartoon da plataforma deixando o mercado a mercê de uma “maturidade” pueril com muito sangue, cinzento e músculo. Efetuou-se uma troca estranha entre dificuldade e conteúdo: A temática infantil de jogos difíceis deu lugar a jogos fáceis com temáticas adultas. Este estranho desencontro não permite o concretizar de uma harmonia etária completa dentro de um próprio jogo e por consequente a criação de um catálogo contemporâneo equilibrado. Uma falha evidente para uma indústria que se reivindica adulta.

Para os mais novos equipados com as consolas da nova norma as opções de sala adaptadas consistem no ocasional jogo da Lego. Não é de admirar a proliferação das sessões de CODs e GTA nas Fnacs perante a indiferença do progenitor lusitano versado em Fifa. “É o que ele quer jogar, que se há de fazer?” Para esta pergunta a Nintendo continua a ser a melhor das respostas. Uma consola onde o catalogo é principalmente pensado para um público de todas as idades… Ou pelo menos era o que eu pensava pois esta abordagem comunicacional deixa entender que esta ingenuidade não passa de uma tonalidade para preencher as necessidades aquarelas dos nostálgicos.

Apesar da Nintendo produzir material adequado para o mercado infantil sem grande oposição, a sua deserção comunicacional permitiu que as crianças, perante narrativas sistematicamente adultas, fossem progressivamente levadas a escolher a opção mais transgressiva dos competidores da moda. A transgressão e o perigo são elementos que fascinam qualquer criança: Uma publicidade da Sony/Microsoft cheia de explosões e armas conseguirá sempre superar uma em que a Cindy da contabilidade solta a franga no Just Dance.

Não quero dizer aqui que a maturação do nosso setor não tenha sido um passo importante uma vez que permitiu abrir novos horizontes e cativar novas audiências credibilizando este lazer o suficiente para animar debates sobre o seu valor artístico.  O problema é mesmo a falta de equilíbrio que não possibilita a formação de uma nova sensibilidade da qual poderíamos todos beneficiar. A Grande maioria do catálogo Nintendo contemporâneo nasceu numa altura em que as crianças eram o sujeito central da indústria e é algo do qual beneficiamos ainda hoje enquanto adultos. Alienar essa fatia populacional é destruir a possibilidade de um gaming plural e acabar com a sua sustentabilidade a longo prazo. Quase todos os jogadores adultos comprometidos começaram durante a infância. Se a infância do seu filho passar por f2p baratos limitados a interações táteis rudimentares, as nossas perspectivas de entretenimento na idade da reforma arriscam-se a não superarem o nível de entretenimento de um programa da tarde. Reposicionar o papel das crianças na indústria é um esforço que implica maior abertura de espírito e uma comunicação inclusiva. Estou convencido de que a recompensa vai para além das boas intenções. Há aqui mais potencial financeiro do que na imitação da concorrência.

https://www.youtube.com/watch?v=ha7ieQjxLfw%20

Post Scriptum: 

Este texto foi redigido antes do anúncio do Super Bowl que integra algumas crianças. Este anúncio ainda não foi alargado para a Europa. Ponderei muito sobre a relevância deste texto mas chego à conclusão que continua tão irrelevante como na altura em que o escrevi. A Problemática de fundo, mais ampla, persiste e vai muito para além da Nintendo. Este texto é essencialmente um convite à reflexão.