Por total coincidência ou fruto do alinhamento fortuito dos astros, acabei por receber, instalar, e jogar dois jogos literalmente de seguida, cuja temática e linha conceptual e ideológica é tão semelhante que a probabilidade de jogá-los aos 2, um a seguir ao outro tornou este evento magistralmente óbvio.
Com a realidade geopolítica actual, não é de espantar que uma das grandes obras literárias do Séc. XX volte ao estatuto de bestseller. O surgimento de maiorias populistas e um regresso de uma extrema-direita branqueada ao poder, alicerçada por decisões que vão progressivamente limitando os direitos e as liberdades em nome da defesa do Estado perante uma ameaça que serve de justificação para qualquer acção governativa. Trump, Farage, LePen, Putin, Orban, Erdogan, são apenas alguns dos nomes do enquadramento geopolítico que demonstram a realidade bem distinta da que conhecemos enquanto crescíamos. Líderes políticos para quem a concepção de liberdade com o qual crescemos é um verdadeiro estorvo.
O mundo em que os milennials como eu cresceram é bem diferente daquele que lentamente se está a transformar. A Queda do Muro de Berlim, o promissor (à época) Processo de Paz Israelo-Palestiniano com Yitzhak Rabin e Yasser Arafat, o final da Guerra do Golfo, para além de uma série de eventos que anunciavam a possibilidade de um planeta mais unido, menos beligerante, em extremo, mais utópico.
No momento em que estamos na segunda metade da segunda década de 2000 o Mundo parece ter tido um retrocesso de décadas. A privacidade não é um dado adquirido num mundo cada vez mais aberto e mais global.
O sucesso comercial e crítico de Papers, please e Her Story abriram novos caminhos e novas possibilidades, preparando-nos e deixando-no receptivos para jogos narrativos com twists às fórmulas de exploração na primeira pessoa que pareciam dominar a abordagem “literária” aos videojogos.
A vertente distópica política que Papers, please “trouxe” para os videojogos é apenas um dos bastiões que tem também République (amplamente inspirado no próprio 1984) e em We Happy Few (com a óbvia referência a Kallocain) como pedras angulares de um género que encontra agora em Orwell mais uma manifestação extremamente eficaz.
Bem sabemos que o título é mais do que on-the-nose, mas em Orwell Orwell é o nome do programa de Inteligência Artificial do país ficcional unicamente definido como The Nation. À semelhança de Paper, please também somos um funcionário do Estado, mas neste caso um investigador político-criminal cuja função é triar informações sobre determinados suspeitos e alimentá-las a Orwell, de forma a que o sistema judicial possa actuar.
Orwell decorre quase todo com um ecrã do interface de Orwell: à esquerda os perfis dos suspeitas e vítimas da nossa investigação, onde temos de “largar” informações recolhidas na parte direita do ecrã, onde decorre a quase totalidade da investigação. Neste sector temos acesso a praticamente toda a vida dos suspeitos, desde a sua pegada digital encontrada através do browser built-in de Orwell, que nos permite inclusivamente investigar os perfis de redes sociais dos suspeitos, e ler sessões de chat entre eles e qualquer pessoa de relevância. Mecanicamente as informações que podemos alimentar a Orwell são definidas através de highlights, é neste pormenor que se encontra o ónus ideológico do jogo.
É ponto assente que esta extrapolação de Orwell pouco mais é do que a vigilância virtual quase constante que quase todos nós que estamos na parte superficial da internet sofremos. Sabemos que há agências governamentais e também as empresas onde colocamos as nossas informações (especialmente Google e Facebook) e têm um acervo sobre a nossa identidade). Aliás, num espectro quase de sci-fi, há reports da influência do perfilamento fidedigno que a análise de grandes dados e das informações que colocamos nas redes sociais conseguiam ajudar a Cambridge Analytica a conduzir as eleições a favor de Trump e do movimento do Brexit.
Mas nesta desumanidade de Orwell há um factor humano: nós, a engrenagem orgânica de um sistema automatizado, e que temos de inferir a partir de dados contraditórios a culpa ou a suspeição dos nossos alvos. Sendo nós a fonte de informação de Orwell, cabe-nos a tarefa de perceber se a nossa suspeita realmente defende movimentações terroristas contra o Governo, ou se é apenas showoff de redes sociais, na tentativa de criar uma persona digital activista. Como duas informações contraditórias não podem ser “dadas” a Orwell, cabe-nos a tarefa de servir de juiz e júri dos suspeitos, sabendo que se considerarmos que é culpado basta fazermos upload dessa informação, o que levará à prisão ou talvez à morte do nosso suspeito.
É aqui que cai parte da dificuldade emocional de Orwell: na perfeita percepção da falibilidade humana e mecânica. Parte do nosso juízo de valor através dos dados que temos em mãos a capacidade de levar à condenação de determinado suspeito, ou por outro lado olhar para o lado e deixá-lo escapar em liberdade.
Orwell é uma obra de arte especulativa mas é assustadoramente contemporânea, mostrando o que é possível inferir através da falta de privacidade que temos, de forma mais ou menos consciente, e o valor da liberdade quando é retirada em nome de valores de defesa do Estado. Essa desculpa de chapéu-aberto que tem servido como escudo de decisões governamentais autoritárias no mundo ocidental.
A Normal Lost Phone foi o jogo que joguei de seguida, igualmente narrativo, no qual o interface se circunscreve ao ecrã de um smartphone que encontrámos. Muito mais mundano que Orwell, A Normal Lost Phone é no entanto mais acutilante na noção de privacidade, e da falta dela.
À medida que vamos pesquisando este smartphone, através das correntes de SMS, da playlist, de informações de apps de encontros e redes sociais, passando pela conta de e-mail, começamos lentamente a criar a estrutura da vida do dono daquele telemóvel, um jovem que acabou de fazer 18 anos e que se chama Sam.
É tão simples a forma como vasculhamos e devassamos a sua privacidade, auscultando os seus segredos mais íntimos como se estivéssemos a folhear o seu diário pessoal. Entre a percepção dos problemas emocionais de Sam, passando por indicações e alusões ao suicídio, é assustador como este pequeno jogo que se remete única e exclusivamente ao ecrã de um smartphone nos consegue pôr a reflectir sobre a nossa identidade digital, e o quão fácil é este acesso ao que consideramos ser mais íntimo, à nossa privacidade, sem ter de recorrer a invasões informáticas de hackers ou agências governamentais. As nossas vidas são pouco mais do que livros abertos no mundo global e digital onde vivemos, e em que o detalhe de cada página depende apenas do nível de abertura pública que temos na internet e nas redes sociais.
Sobretudo, com a forma magistralmente bem-escrita como Orwell e A Normal Lost Phone desenvolvem as suas duas histórias distintas que colidem no elemento comum da privacidade, é que sentimos a força da simplicidade ideológica que 2 obras de videojogos como estas conseguem ter. E dois jogos simples, um em que possuímos apenas o interface de um programa/browser ficcional e outro em que controlamos apenas o ecrã de um smartphone permitem-nos desenrolar dois dos melhores enredos que pude ver escritos neste ano de 2017. Dois jogos que passarão bem por baixo do radar da maioria dos jogadores, mas cujo impacto conceptual, político e ideológico é inversamente proporcional à sua própria complexidade mecânica.
https://www.youtube.com/watch?v=up-yaDbqH2k