A quase apologia do crime organizado parte 1

Sabem aquelas séries (de videojogos, de Televisão, de banda-desenhada, etc.) que um amigo vosso insiste há anos para que experimentem, e nós até concordamos, apesar de diversas circunstâncias o impedirem? A minha era Yakuza, que o Leonel há mais de 10 anos insiste para que eu jogue.

Ter no início de 2017 o lançamento da prequela da série foi a minha derradeira desculpa para o experimentar, sem as constrições de entrar na franquia a meio da história e sem medos de perder o fundamento do que acontecia no enredo.

Sendo este o primeiro de dois artigos dedicados ao crime organizado, a primeira consciência que tem de existir da curiosidade sobre um tema que reflectindo bem não é assim tão positivo, é o tremendo romanceamento que diversas manifestações culturais nos projectaram, neste caso, da Yakuza.

Falo especialmente de manifestações anteriores até a este pendor narrativo dos videojogos, da forma como a literatura, o cinema e até a Banda-Desenhada ajudaram a criar uma ideia quase romântica do crime organizado nipónico, alicerçado nas práticas internas que lhe são únicas (e que tanto diferem da cosa nostra, do qual falaremos noutro artigo).

Os filmes que nos foram chegando de Kinji Fukasaku e de Takeshi Kitano, para além de muitos realizadores japoneses que desenvolveram o subgénero cinematográfico yakuza eiga que se debruçou exclusivamente na forma como o crime organizado coexistia intrinsecamente ligado à sociedade japonesa. Todos os pequenos estereótipos que fomos “aprendendo” com estes filmes e que apenas serviram para implantar na nossa memória uma série de conceitos associados com a Yakuza, do qual os mindinhos decepados e as tatuagens de corpo inteiro são duas das manifestações mais óbvias.

Yakuza 0 é uma história passada na década de 1980, e é perceptível muita da imagética dos filmes de meados dos anos 1970 de Fukasaku, o nome maior do género na 7ª arte japonesa. Esta proximidade com o cinema não se fica pela mera linguagem inspirada nos realizadores nipónicos clássicos, mas essencialmente no verdadeiro foco narrativa de Yakuza 0. Vendê-lo como um jogo de acção, apelando à grande franja do mercado mainstream que é seduzível por button mashers e hack ‘n slahers, e sandboxes é reduzi-lo àquilo que acaba por ser uma pequeníssima parte do seu todo.

A decisão da Sega de voltar à origem de tudo, ao ponto que define a “carreira” de Kiryu e também do outro protagonista do jogo, Majima Goro, tornou-se um passo inteligente e uma brilhante forma de permitir que muitos jogadores pelo mundo fora criassem entusiasmo por uma série que já dura há alguns anos, mas podendo contactá-la por um episódio 0, uma prequela, torna esse contacto muito mais natural.

À falta de melhor descrição, dir-se-ia que Yakuza 0 é um jogo “cinematográfico”. Não porque tenha uma atenção obsessiva de hiper-realismo e de mimetização da realidade, mas porque o seu objectivo primário é o de contar uma história. Uma boa história para ser mais preciso.

O ritmo de jogo é notoriamente oriental. As sequências de diálogo e os interlúdios narrativos ocupam mais de 2/3 de todo o jogo, e facilmente sentimos que cada pormenor, cada linha paralela de enredo (das side chain quests opcionais paralelas, mas altamente recompensadoras do ponto de vista da história que está a ser contada) ajuda a dar forma a toda a vida de Kamurocho, o bairro ficcional de Tóquio onde decorre a história de Kazama Kiryu, o estóico protagonista de Yakuza. Estas histórias paralelas levam-nos a servir de modelo social de badassery a uma banda punk famosa que afinal tem uma série de betinhos amedrontados como membros, ou até a amizade com uma jovem de uma loja de conveniência. Há muitas histórias a serem contadas na grande narrativa que é Yakuza 0. O desaceleramento narrativo que o jogo nos impõe joga com ritmos de build up do próprio enredo, alternando entre fases em que vagueamos livremente pela cidade (e a passar tempo em salões de arcadas como eu fiz, ou a ir a bares de karaoke beber e cantar) como caminho para momentos memoráveis e bem construídos da vida de Kiryu.

Em todos os aspectos Yakuza 0 está diametralmente oposto àquilo que os seus congéneres de mundo aberto do Ocidente trazem. Começando pelo facto de que a história, como referimos, se sobrepõe de forma óbvia sobre as componentes mecânicas. A abertura do mundo é muito relativa, e onde GTA (por exemplo) apresenta propostas sandbox para o género com mundos gigantescoe e detalhados, Yakuza 0 limita-nos a acção dentro do bairro cheio de néons, repleto de tribos urbanos e de 1980s em cada tijolo que é Kamurocho, que facilmente percorremos em passo de corrida (ainda que os táxis permitam o fast travel entre zonas).

Se no Ocidente o bravado das armas e dos tiros é uma das tónicas, em Yakuza tudo é resolvido no mano-a-mano (mesmo que isto envolva lutarmos sozinhos contra muitos adversários ao mesmo tempo), e os nossos protagonistas resolvem tudo à lei do soco (ou do bastão). Onde Mafia e outros congéneres trazem armamento, Yakuza remete-se ao aspecto brawler da coisa, lembrando a desonra do uso de armas de fogo dentro da “ética” da organização (este costume está inclusivamente incorporado dentro da história principal, quando logo no início somos acusados injustamente de ter morto alguém a tiro).

Os combates falam japonês, e ao contrário dos sandboxes que nos colocam a lutar contra inimigos espalhados no mapa, aqui são uns quantos encontrões a transeuntes que “activam” random encounters com grupos de adversários. Sendo um brawler puro, Yakuza 0 dá-nos 3 stances/estilos de luta diferentes, que vamos fazendo “level up” com dinheiro que ganhamos de missões mas também da nossa performance em combate.

O enredo de Yakuza move-se no equilibrismo sem rede entre a ideia romanceada e ficcionada (com inspirações reais) da organização, e a realidade japonesa. Rapidamente percebemos que existe uma correlação no mundo em que Kiryu e Goro vivem e a grande bolha económica que afectou o Japão naquele período. Sem incorrer em spoilers, é óbvia a percepção da importância (até criminosa) que o mercado imobiliário tem no jogo, sendo a base da linha principal do enredo. Existe uma correlação directa entre a tremenda especulação imobiliária japonesa (em que até a Yakuza adquiriu e investiu em bairros inteiros nas principais cidades nipónicas) que acabou por estourar em 1992.

As tradições da Yakuza são bem patentes pelo enredo e revelam acima de tudo alguns dos factores da sociedade e da cultura japonesas. A ausência de armas de fogo, em que a violência física e as lâminas tomam substituto da coerção da Yakuza está intimamente ligada às leis altamente restritivas e punitivas do Japão em relação a armamento. A ética interna e a subserviência hierárquica, onda a honra é seguida acima de tudo é bem materializada no conhecido acto de Yubitsume, que envolve cortar a ponta do mindinho esquerdo como forma de compensação por algum erro cometido. As célebres tatuagens japonesas de corpo inteiro que têm contornos ritualísticos nos escalões da Yakuza são aqui um tópico integrante, especialmente como os altos-membros da organização exibem as suas Irezumi.

O outro equilíbrio estranho que Yakuza 0 consegue facilmente resolver é o da seriedade e da auto-consciência enquanto jogo. Depois de percebermos que internamente na Sega Yakuza foi desenvolvido originalmente como uma tentativa de follow-up do sucesso de Shenmue, percebemos as muitas actividades mundanas que temos, nos quais uma máquina de feira de garra (daquelas em que colocamos moedas e tentamos apanhar um prémio) são reflexo desta nova forma de ver o game design que o jogo de Yu Suzukui trouxe. Estas actividades ajudam a perceber a ligação (e o crescimento narrativo) de Kiryu com o mercado imobiliário de Tóquio e Majima enquanto futuro barão da noite de Osaka, e as suas ligações a cabarets, e são mais do que o aparente filler narrativo.

É pacífico afirmar que em quase todos os casos, os jogos sandbox ocidentais têm os seus protagonistas apenas como um meio para atingir um fim, e usualmente este fim é pouco mais do que dar um parque infantil para adultos onde podemos conduzir, atropelar, alvejar, correr, saltar, nadar, etc. Em Yakuza o quasi-fechado sandbox (onde não existem armas (na nossa posse) nem carros a passar) são o meio para atingir um fim, e esse fim é contar a história de Kiryu e Majima, a destrinça dos seus caminhos, das suas decisões e das suas personalidades.

Onde Kiryu é contenção, rigor, subserviência e lealdade extrema ao seu oyabun, Majima é excentricidade, luzes e ribalta. E é no acompanhar das duas vidas em paralelo que esta história de crime organizado, aliás, este prefácio de uma longa saga, se desenrola. Ainda que pudéssemos estranhar o facto de que cometemos muito poucos crimes em todo o jogo, e até funcionamos como estranhos vigilantes a proteger pessoas indefesas pelas ruas, percebemos que essas decisões e esse proteccionismo estão intimamente ligadas com a construção dos personagens e com a diametral diferença entre o crime organizado ocidental e nipónico.

Yakuza 0 é uma história brilhantemente contada e executada de forma exímia em videojogo, como se a série de filmes de Fukasaku se mesclasse com o brawling convicto de um Final Fight dos velhos tempos. Consegue dar uma visão mais humana por trás do crime organizado, aquela faceta que por vezes conhecemos através das notícias e que clareiam um pouco a infâmia da Yakuza. Um grande momento de storytelling mainstream, e que serve como um gigantesco e dourado portão de entrada para uma série excelente que muita gente receava entrar a meio, mas que vem realçar as diferenças culturais e criativas entre o mercado ocidental e oriental.