É uma tarefa hercúlea a de inovar dentro de géneros que (aparentemente) pouca margem têm para algo inovador ou inesperado. Mas por vezes nem é preciso reinventar a roda ou redefinir l’état de l’art para conseguir falar a mesma linguagem, mas de forma brilhante. É nesse simples segredo que encontramos em Loot Rascals.
Já por diversas vezes aqui falei do quanto me agrada esta nouvelle vague de indie devs que ressuscitaram géneros colocados na prateleira pelo mercado AA e AAA que dominaram os videojogos na década passada. O problema que advém deste sangue fresco e o grande dano colateral da extrema democratização de meios de produção e publicação: a saturação do próprio mercado como um todo. Rapidamente vimos os roguelikes passarem de um género morto-vivo para um dos que mais jogos vêem serem produzidos semanalmente.
Para um criador, como é o desafio de inovar, ou pelo menos de tornar distinto o seu jogo perante centenas deles? Para o consumidor, quão difícil é encontrar jogos realmente diferentes e que mereçam o seu investimento financeiro e de tempo?
Para um criador a resposta é mais ou menos simples: ao invés de apostar em bancos de assets múltiplas vezes regurgitados por tantos outros roguelikes, a aposta numa direcção artística única pode funcionar a seu favor, como aconteceu com Sproggiwood e Skyshine’s Bedlam, e como certamente funcionou com este Loot Rascals. A linguagem visual alude a um livro infantil, com toda a loucura e descomprometimento dos mais criativos livros para crianças, em que o universo é coeso e credível pelo salutar quase-surrealismo pueril.
A história é curta e simples, e fica lá atrás num espaço da memória, bem escondido pela força e pelo design dos seus personagens e do seu ambiente. Ambiente este cuja paleta de cores e genialidade auditiva que ajuda a tornar Loot Rascals um misto agradável de melancolia divertida, em que a permadeath quase parece não ter consequências.
Quase parece.
Há neste aspecto uma grande proximidade com Sproggiwood, na luta de ambos de se afastarem dos clichés de high fantasy do género com o cunho estético habitualmente impresso, e optarem por uma linguagem mais infantil, mais descontraída e colorida, e que quase choca com a ideia de morte permanente mecânica, e a atenua de uma certa forma, sem nunca lhe tirar relevância.
O problema da morte permanente em Loot Rascals não está apenas relacionada com a progressão nos 5 mundos aleatoriamente gerados que constituem o jogo. O ónus da permadeath é a perda total do nosso inventário, e que é simultaneamente um dos trunfos deste jogo (trocadilho intencional, como verão já de seguida). O que nos aumenta as estatísticas de ataque e defesa são cartas que apanhamos como loot na morte dos muitos Rascals que defrontamos. Estas cartas podem ser colocadas numa das 10 slots de inventário, sendo que alguns dão bónus adicionais por serem colocadas em posições específicas. É sobretudo na gestão matemática e espacial do posicionamento das cartas no nosso inventário que surge grande parte do flavour deste Loot Rascals.
Sempre que morremos, e antes de perdermos todas as nossas cartas e ressuscitarmos, o Rascal que nos derrotou rouba-nos uma ou mais cartas. E para quê? Para ter a possibilidade de aparecer no jogo de outro jogador, e após ser derrotado deixará cair a “nossa” carta. O jogador terá então a oportunidade de ficar com a carta para si (e um holograma nosso atacá-lo-á por isso) ou poderá devolver-nos e será recompensado.
A outra mecânica curiosa deste Loot Rascals é que o jogo utiliza de forma inteligente a fórmula de muitos roguelikes de “é turn-based apesar de não parecer”, criando um sistema de noite e dia que passa a cada 5 turnos. Este sistema é importante porque os Rascals oscilam entre estados de Defesa ou Ataque (o que significa que no primeiro caso somos nós a dar o first hit, no segundo caso, eles) entre noite e dia, sendo que esta alteração depende de criatura para criatura. Parte da sobrevivência neste dificílimo jogo prende-se com a gestão destes turnos, e interessa-nos sempre atacar os Rascals quando eles estão em defesa, para que possamos (se for numericamente possível) destruí-los com 1 hit sem levar dano de volta.
O combate é automático e segue esta sequência, e acontece sempre que nós e um Rascal partilhamos o mesmo hexágono.
Loot Rascals tem charme próprio e uma tremenda rejogabilidade (e dificuldade). É verdade que a geração processual de cada nível leva-nos a ter situações de playthroughs que começam excessivamente difíceis (com monstros demasiado fortes para o equipamento que possuímos) ou vice-versa. Mas esta aleatoriedade é apenas fruto da característica intrínseca ao género.
O que o estúdio Hollow Ponds de Ricky Haggett nos prova é que é possível neste proclamado-”indipeocalipse” fazer jogos com alma, criativos, distintos e desafiantes. Loot Rascals apanhou-me na curva da falta de expectativa de jogar mais um roguelike. Mas cedo me provou que “mais um” não se aplica de todo aqui, e ganhou a oportunidade de ficar aqui bem guardado no computador para alguns momentos de grande descontracção, num dos mais criativos e bem-executados roguelikes que chegaram aos mercado nos últimos meses.
Lançado para PC e PS4. Analisada a versão de PC.