Tinha pensado em algo completamente diferente para escrever hoje. Tenho estado a preparar um artigo há mais de 6 meses, mas as datas que anteriormente planeei não eram exactamente precisas e por isso, algo que preparei com tanto tempo, que pensei com tanto amor, tem pelo menos que cumprir alguma precisão cronológica. Ainda que possa não cumprir com mais nada…

Mas no Sábado fui com o marido ao cinema, ver o muito aguardado Logan, e o filme ficou a ressoar em mim. E hoje, enquanto pesquisava informação para compor e arrumar o que se vem construindo em mim há tanto tempo, dei por mim a ver e rever vídeos de The Last of Us. A ver e rever vídeos de Ellie.

Acho que por esta altura não necessito escrever qualquer linha introdutória sobre The Last of Us, dado que este exclusivo da PlayStation lançado em 2013 tornou-se quase de imediato um jogo de um sucesso incontornável (comercial e não só), sendo por muitos considerado o melhor exclusivo Sony da passada geração. Para outros, como eu, um dos melhores (senão mesmo o Melhor) “Story driven game” de todos os tempos. A prova que uma premissa pode ser imensamente repetida e soar a absolutamente original quando executada com mestria. Sim, tal como já disse repetidamente em vários outros artigos, a originalidade não garante a qualidade e a qualidade não depende do conceito original – depende sim dos detalhes e capacidade de execução.

Com um conceito milhentas vezes visto em filmes, livros, séries e videojogos, o conceito de um mundo pós apocalíptico aparece aqui como assustadoramente real. Afinal, o fungo cordyeps existe mesmo. Efectivamente controla o sistema nervoso central de pequenos insectos e aracnídeos. O corpo destes desenvolve apêndices em todas os seus membros e os pequenos animais nada podem à mercê deste invisível monstro em forma de fungo. Tornam-se agressivos, atacam outros, atrofiam e morrem. Tal como as criaturas humanas infectadas de The Last of Us. E este pequeno detalhe refresca por si só um conceito cansado e gasto, mostrando que, se algum dia o “zombie apocalypse” acontecer, será muito provavelmente às mãos da própria natureza. E descansem que não é preciso a possibilidade de um evento sobrenatural em que os mortos regressem à vida – a Natureza tem à sua disposição armas bem mais eficazes do que qualquer possível acontecimento sobrenatural.

O mundo pós-apocalíptico desenhado em The Last of Us é desolador e maravilhoso. Parecem conceitos antagónicos, eu sei, mas não são. É um mundo em que a civilização como a conhecemos caiu. O Ser Humano, pelo menos o não contaminado, voltou aos seus instintos mais básicos de caça, protecção de território, domínio sobre outros, luta por bens que garantem sobrevivência. Lamentavelmente, quando a civilização acaba, aquilo que vemos no Ser Humano  não é um ser inteligente que tenta resolver o problema que o levou àquele estado… o que vemos é a natureza humana no seu pior. Empatia, solidariedade, amor… valores que se extinguiram à mesma velocidade que a sociedade que os abraçou. Todo este desespero e solidão são traduzidos para o ecrã com uma beleza tão pacífica quanto perturbante. Os gráficos são maravilhosos e os cenários por vezes, autênticos quadros. Vemos a Natureza a reclamar de volta o Mundo que o Ser Humano abandonou. Os edifícios abandonados têm agora vegetação. As estradas… trilhos de árvores. É um Mundo a voltar ao seu equilíbrio. A Natureza a recompor-se. E isso, embora desolador, é para mim absolutamente maravilhoso.

Neste mundo somos Joel, um homem cujos 20 anos passados em incessante luta pela sobrevivência e a perda que sofreu quando tudo iniciou, o tornaram frio, distante, emocionalmente autista, sem capacidade para sentir algo por alguém. Algo verdadeiramente significativo – que o faça agir por outro que não por si. Até que conhece Ellie, a menina ruiva de 14 anos, aparentemente imune à doença, que Joel tem que escoltar pelo país inteiro numa tentativa desesperada de poder descobrir alguma cura que devolva a esperança a uma espécie que, outrora a dominante, está agora à beira da extinção.

E é quando, enquanto Joel e jogador, conhecemos Ellie, que o jogo se torna efectivamente algo diferente. Sim… quando joguei The Last of Us, estava a gostar do jogo nas primeiras horas. Um bom jogo, mas não impressionante. Mas ela entrou. A menina ruiva que Ashley Johnson trouxe à vida. Ellie. E nesse momento o jogo torna-se algo que vai para além de um mero objecto de entretenimento.

Ellie é, quanto a mim, o melhor NPC alguma vez criado. Chamo-lhe NPC embora tenha um DLC inteiramente dedicado à sua personagem onde nem por um momento voltamos a jogar com Joel. Mesmo no jogo principal, é dedicado a si um capítulo quase inteiro onde a encarnamos e conseguimos sentir o quão frágil e vulnerável é Ellie naquele mundo. Mas ela é sobretudo um NPC – uma personagem que protegemos durante umas 15 ou 16 horas de jogo. Porque a considero o melhor NPC de todos os tempos? O que tem esta adolescente que adora contar anedotas que não encontrei noutra personagem com a qual me tenha cruzado?

A resposta a esta pergunta é mesmo muito pessoal, mas que se lixe. Aqui vai. Desde a equipa que a escreveu, até á equipa que a concebeu, passando pela actriz que lhe deu movimento e voz, é perfeitamente visível que Ellie foi gerada com muito Amor. O Amor que se sente por algo que concebemos e criamos – como um filho. Aquela personagem foi pensada até ao último pormenor. A forma como brinca com a faca quando andamos a explorar sem lhe darmos atenção. A forma como pára para atar o atacador e sacudir as calças. A forma como, enquanto procuramos loot que nos permite fazer armas, a vemos empoleirar-se para espreitar para o outro lado de um muro qualquer… tal como qualquer criança curiosa. A forma como se irrita quando, enquanto jogador, ficamos parados demasiado tempo no mesmo lugar sem fazer nada. Perante a passividade de um Joel imóvel, Ellie começa espontaneamente a comentar: “So… we’re actually here… standing… doing nothing…”. A forma como comenta os pequenos detalhes que encontra, como as estátuas de gnomos no jardim ou os discos de vinil numa loja… ou um jogo de arcadas que a criança que nasceu neste mundo nunca explorou. Brinca aos “hotéis” e finge que é uma hóspede. Pergunta-se como será ir ao cinema. Como será preocupar-se unicamente com a roupa que vai vestir. Como será ir a um bar e beber café. Quer aprender a assobiar – aquele marco que enquanto miúdos todos quisemos atingir (porque de alguma forma nos tornava “mauzões” e adultos). Tem um sentido de humor sarcástico, a resposta e o palavrão na ponta da língua. Não sabe calar-se quando não gosta. Exige explicações e não aceita ser ignorada. Lê banda desenhada mas detesta “cliff hangers” – aqueles pontos exasperantes em que a narrativa é interrompida num ponto fulcral para levar o leitor a comprar o próximo fascículo. Adora cantarolar e fá-lo a qualquer momento. Espera que Joel se distraia para poder roubar o brinquedo desejado por uma outra criança. Delicia-se com a visão de uma girafa, reconhecendo a beleza imutável de um animal no seu estado selvagem e livre. Quer falar de tudo… conhecer tudo… e nós, enquanto jogadores, queremos conhece-la e conhecer o mundo com ela. Através dos olhos dela.

É que… Ellie não é como Joel. Não teve algo que perdeu com a catástrofe que se abateu sobre o Mundo. Ellie já nasceu num mundo perdido… tudo o que ela conhece é a constante desolação e abandono. E mesmo assim consegue lutar, sorrir e ver algo de positivo em tudo. Mas não de uma maneira ingénua ou fútil – consegue fazê-lo através da profunda crença que se pode lutar por algo melhor. Algo esse que, curiosamente, nunca conheceu.

É também uma lutadora nata – frágil mas corajosa e destemida, cuja resiliência e vontade de sobreviver ultrapassa qualquer outra coisa. É paciente com a frieza de Joel. Frustra-se…quer mais… mas aceita-o e entende-o. Aprende a confiar nele e deposita neste homem uma lealdade inabalável. Não sabe ser filha… nunca o foi verdadeiramente… e Joel esforça-se por se esquecer do que é ser Pai. Por amar algo que pode perder novamente. Ellie não quer voltar a sentir-se sozinha e abandonada. E neste espectro de opostos que se cruzam, vemos uma relação de verdadeiro Amor primordial crescer. No mundo que já se extinguiu do melhor que conhecemos no ser-humano, jogamos a história de duas pessoas que lutam para trazer o Amor primário de volta. Como se na história de Joel e Ellie pudéssemos ver a raça humana recordar-se do que é absolutamente Essencial e que nos torna verdadeiramente Vivos: a capacidade de Amar incondicionalmente outro ser – seja qual for a forma ou objecto desse amor.

Entenderam agora porque considero Ellie o melhor NPC alguma vez criado? Neil Druckman e a equipa criativa da Naughty Dog, juntamente com Ashley Johnson, criaram uma personagem imaginária que se torna mais real que qualquer outra personagem que já tenha observado. Apenas a comparo a Trico – só Trico conseguiu aproximar-se do que foi (e ainda é) Ellie para mim. Quando joguei The Last of Us, pegava na consola com a ansiedade de “estar” com Ellie. Quis protegê-la com a mesma ânsia de Joel. Para alguém que nunca foi ou jamais será mãe, vi em Ellie a “filha” imaginária. Tal como em Trico projectei a emoção sentida por todos os animais que alguma vez cuidei, em Ellie projectei o espectro possível de emoção que poderia sentir algum dia se fosse mãe. Protegê-la tornou-se mais importante que qualquer outra coisa. Na cena final, quando Ellie está prestes a ser operada, “entrei” pela porta e, enquanto jogadora, “matei” sem qualquer hesitação todos os médicos da sala. Todos. Não me preocupei em saber se haveria outra forma de o fazer – levá-la apenas ou um outro final alternativo. Na pele de Joel entrei… vi Ellie deitada… e em menos de 5 segundos, sem qualquer tipo de exagero, pequei na minha arma e disparei para todos. Quase sem emoção. Para mim, que enquanto jogadora choro com grande facilidade e debato-me com algumas escolhas morais de personagens, não houve o mais pequeno momento de dúvida ou sequer hipótese de alternativa. Ellie estava em perigo – e isso foi tudo que a Alexa jogadora viu. Ellie era o Mundo para Joel, para a Alexa naquele universo de jogo, e por isso mesmo, o Mundo sem ela não merecia ser salvo.

Não quero pensar muito o que isto diz sobre mim…eu sei perfeitamente o que diz, mas deixo-vos que interpretem à vontade. Pensem de mim o que quiserem. Conto-vos isto não com orgulho, nem tão pouco vergonha – é o que é…conto-vos sim para vos mostrar a que ponto Ellie se tornou real para mim. Até que ponto me permiti ligar a uma personagem. Tal como chorei desesperadamente por ver Trico ferido, lutei como um animal primitivo para defender Ellie. E quando o jogo acabou, voltei a iniciá-lo uma e outra vez, apenas para poder desfrutar de todos os detalhes com a calma de quem já consegue observar com a distância necessária uma magnífica obra de arte.

Ver Logan deu-me vontade de falar de Ellie. Para além de ser, desde Dark Knight, o melhor filme de super heróis que alguma vez vi, (com camadas de emoção surpreendentes num filme do género e cenas de acção excelentes), propositadamente ou não, Logan transportou-me novamente para a relação de Joel e Ellie. Para o amor que Joel redescobre e a confiança que Ellie aprende a sentir novamente.

Demorei 6 meses a preparar um artigo que ainda não é lançado hoje. 6 meses que estou a tentar organizar para tentar produzir algo com alguma qualidade. 6 meses postos de lado pela emoção que um filme fez renascer. Não importa… 6 meses jamais se irão sobrepor ao reencontro com a ligação sentida com a menina ruiva que a Naughty Dog criou.

E se mesmo depois de toda esta explicação, ainda alguém me perguntar porque acho Ellie o melhor NPC alguma vez criado, irei sorrir e citar a frase que melhor resume o seu carácter: “Ellie… Tell them that Ellie is the name of the little girl that broke your Fucking finger!”