Não é preciso ser-se muito sagaz ou conhecedor de videojogos para se perceber que o verdadeiro contágio criativo que as tendências do mercado instigam nos jogos é de certa forma confrangedora. Depois da aplicação quase doentia das skill trees e de elementos de RPG em todos os géneros possíveis e imaginários, a obsessão com o crafting e com tudo o que pudesse remotamente lembrar o Minecraft, diria que o grande Síndrome que aflige o mercado mainstream nesta década é aquilo que poderíamos apelidar do Mal da Caixa de Areia, uma maleita severa que tem acamado muitos jogos, demasiado fracos para se erguerem nas pernas sob o peso titânico da doença.

É claro que no meio da pandemia, há casos em que o sandbox open world faz todo o sentido, como ainda este ano tivemos já dois bons exemplos: Horizon Zero Dawn e Breath of the Wild. Dois casos em que toda a construção do mundo, desde o nível mecânico ao conceptual foi intrincadamente desenvolvida em perfeita união com a definição de open world, onde esta abertura era um elemento justificativo para a existência do próprio mundo onde o jogo decorre.

E depois, no extremo oposto temos Tom Clancy’s Ghost Recon Wildlands.

Para começar na única nota alta de Wildlands, para depois seguir o caminho descendente a pique até ao abismo da putrefacção: este jogo é visualmente deslumbrante. A equipa de desenvolvimento realmente correu mais do que uma milha extra para representar fidedignamente a paisagem da Bolívia, recriando (aquilo que imagino) ser o ambiente quase tropical boliviano num dos cenários mais impressionantes que vi surgir na geração actual, exponenciado pela possibilidade de jogar este jogo na configuração Ultra no PC.

Mas depois de passarmos essa primeira camada de beleza extrema tudo se desmorona. O enredo é abaixo de sofrível, apenas ultrapassado pela mediocridade dos diálogos e do correspondente voice acting. Não sendo o maior fã de Tom Clancy, ou mesmo do estilo literário de espionagem/guerra, preferindo até John le Carré do pouco que li do género, mas acredito que a necessidade de colar o nome do falecido escritor à franquia de Ghost Recon, e em especial ao nível de escrita deste Wildlands é quase um insulto à sua memória.

À falta de tradução melhor no léxico português, toda a componente de quests e subquests é, para não utilizar pior palavra, bland. Há uma monotonia e um investimento superficial em alimentar-nos uma réstia de interesse sobre o enredo principal, e a forma como os barões da droga e o Cartel dominaram La Paz. É curioso que depois de terem lançado (literalmente) dezenas de jogos em mundo aberto num espaço de tempo de dez ou poucos mais anos, a Ubisoft não tenha aprendido que todas as missões desinspiradas, repetitivas, frustrantes por serem mal-desenhadas, e que pouco mais são do que tarefas servis para nos manter ocupados já não funcionam. Se não funcionavam nas defuntas missões de perseguição silenciosa em Assassin’s Creed que deixaram multidões de jogadores exasperados pela sua futilidade, e que são agora recuperados em todo o seu esplendor de atrocidade em Wildlands.

Sendo vendido como um tactical shooter com uma grande componente de cooperativo (online), Wildlands traz para equação aquilo que eu acho que a série menos precisava: um mundo aberto. Especialmente um mundo aberto artisticamente brilhante mas mnemonicamente esquecível, superficial e com pouco sentimento da nossa presença enquanto co-habitantes.

Tom Clancy’s Ghost Recon® Wildlands_20170305141801

Acredito que um dos melhores caminhos que a Ubisoft poderia ter seguido para conseguir levar este Wildlands a bom porto seria manter a circunscrição de tactical shooter a um espaço fechado, mesmo que esses espaços fechados fossem grandes porções de cenário ou de nível, como aconteceu com Rainbow Six Siege. Não consigo perceber do ponto de vista de game design o que é que a Ubisoft, ou mesmo nós, os jogadores ganhámos em trazer o jogo para um mundo aberto. Quer dizer, até sei, mas nenhuma das razões abona a favor da companhia. A primeira é uma questão meramente mediática, de deixar que a futilidade de muitos media inflamassem a excitação das comunidades em relação a este ser “o maior open world feito pela Ubisoft” (sic). O segundo é a estranha ocupação do vazio com pulverização de entulho repleto de vacuidade, dando a ilusão de que o jogo é mais complexo e completo do que realmente é, mantendo-nos a todos ocupados numa idiótica caça aos gambozinos.

O outro ponto que é me é verdadeiramente detractor de Wildlands é o setting, mas aqui, assumo, que é um problema meu e não do jogo. Eu percebo a vontade da Ubisoft de seguir a atenção e o mediatismo de Narcos, a aclamada série do Netflix com uma representação dourada do brasileiro Wagner Mura no papel do colombiano Pablo Escobar, com muita gente online a traçar paralelos entre a curiosidade temática que a série de televisão levantou e este regresso de Ghost Recon “às origens”. Mas se para muita gente esta abordagem ao crime na América do Sul e a representação, ainda que ficcional, da Bolívia (levando até ao Governo boliviano a efectuar queixas formais junto do Governo francês), para mim há pouco ou nenhum interesse, e que ainda menos ajuda a um jogo que é mecânica e conceptualmente desinteressante e é tão bland que facilmente se conseguiria colocar mods em cima dele para ele ser algo ainda melhor do que é. Por um exemplo, substituindo todos os personagens humanos por personagens de My Little Pony e todos os veículos por nuvens e arco-íris. Decerto que seria um jogo mais memorável do que Wildlands é.

Em suma, o melhor paralelismo que podemos fazer com Wildlands é com aquela rapariga ou rapaz deslumbrantes do liceu, que faziam brilhar os nossos olhos e palpitar os nossos corações. Mas qualquer leve contacto directo com eles demonstrava o quão vazios eram, que chegavam a ser insuportáveis, demonstrando tacitamente que não é uma capa que faz um livro.

Neste caso não é uma maravilhosa atenção ao detalhe visual que fazem de Wildlands algo acima do sofrível, num dos mais desinspirados e aborrecidos jogos em mundo aberto feitos ultimamente, no qual nem a forte componente cooperativa consegue trazer algum sabor à tonalidade bland que cobre todo o jogo. E cujo destino, para além do esquecimento, é uma passagem prévia pelo caixote do lixo.