A mãe de Forrest Gump diria que Nier: Automata é como a vida: nunca se sabe o bombom que nos vai calhar. Este jogo da vida, que é como quem diz, de constantes surpresas, é uma das assinaturas de Yoko Taro, o autor de culto por detrás desta sequela de Nier. Os seus jogos procuram destilar a essência barroca da animação japonesa, com os seus enredos cheios de reviravoltas mirabolantes, doses exacerbadas de angst adolescente, e uma mórbida obsessão existencialista para questionar tudo e mais qualquer coisa. Automata é assim: um shōnen de acção que versa sobre o significado da vida, do amor, do sofrimento, da morte. Coisa pouca, portanto.
A sagacidade de Taro revela-se na sua capacidade transmediar a essência barroca da narrativa anime para o plano dos sistemas de jogo. Imaginem um jogo em que num momento estão a jogar um action-adventure tridimensional, noutro um sidescroller, noutro um RPG, noutro um shooter top-down, noutro uma ficção interactiva, noutro um survival horror e noutro uma mixórdia aleatória destes géneros todos; imaginem isso e têm um pouco a ideia do que é jogar o primeiro Nier. Taro delicia-se a brincar com as nossas expectativas de um sistema de jogo coerente e singular, oferecendo-nos por contraposição um potpourri de géneros que varia tanto que soa a épico de rock progressivo. O pastiche agrada não só porque nos traz uma miríade de pequenas surpresas ao longo da experiência (mantendo a sua novidade findas várias horas), mas também porque gera um meta-diálogo pleno de cumplicidade entre jogador e autor, à medida que procuramos o jogo/filme/anime/o-que-for que Taro copiou para criar um trecho em particular.
Mais que a eterna recorrência de novas mecânicas de jogo, é na maquiavélica sobreposição entre narrativa e jogo que Automata vai além de um certo virtuosismo masturbatório. Taro usa a famosa dissonância ludonarrativa para forçar uma reflexão mais profunda sobre as nossas acções no jogo. Como em qualquer título de acção, aqui o jogador é agente de destruição, combatendo e obliterando todos que se atravessam no seu caminho. Noutros jogos, tal confrontação bélica seria embelezada por uma narrativa com o seu quê de propaganda de guerra: nós somos bons e os outros são maus, por isso não tem mal decapitar e esventrar tudo que se cruza connosco. Taro inverte essa moralidadezinha de trazer por casa: sublinha a crueldade das nossas acções à toute force, e traz para primeiro plano as atrocidades que causamos: as nossas vítimas são caracterizadas não como vilões, mas figuras frágeis e infantis, e os protagonistas (e por extensão, o jogador que as controla) como bem-intencionadas marionetas que a genética e o destino condenaram a perpetuar um trágico ciclo de violência niilista.
É com essa feliz subversão dos códigos do meio que Nier expande a sua narrativa (algures entre o eclecticismo de Shinichirō Watanabe e a depressão Nietzschiana de Hideaki Anno) para um domínio iminentemente videolúdico. E se a sua ficção tem tudo o que há de bom, mau e só estranho no melhor anime contemporâneo (o que inclui o mau gosto gritante no tratamento da sexualidade), quando transposto para o meio interactivo torna-se mais fácil desculpar os seus múltiplos defeitos. Afinal, se tivermos em conta o paupérrimo panorama da ficção videolúdica – que é 100% estilo, 0% substância – por comparação, Automata acaba por primar pela profundidade (!), por muito que noutros meios ficasse um nadinha aquém da marca de água.
Embora a proximidade do seu registo à cultura otaku possa convidar a comparações com Kojima, Goichi, ou Swery, podemos dizer com confiança que Taro se estabeleceu como autor em nome próprio, enquanto alguém dono de uma linguagem e temas-fetiche muito seus. Na verdade, Automata desilude apenas na medida em que é só mais Yoko Taro, que é o mesmo que dizer, mais dos mesmos truques e tiques que já havíamos visto no excepcional Nier e nos menos excepcionais Drakengards que assinou. Pouco ou nada Automata acrescenta ao seu antecessor que não uma produção com o selo de qualidade da Platinum Games, o que admitimos, tem a grande vantagem de dar num jogo de acção mais dinâmico e cuidado, que resiste prazeroso durante a longa campanha. Com ela, a Platinum trouxe ideias dos seus melhores títulos (sobretudo Bayonetta), que complementam o enorme role de referências do Nier original… há ainda uns pozinhos de Souls, Radiant Silvergun, Last of Us e Infinity Gene para um aroma extra a sequela, mas mesmo isso sabe a pouco.
Nem a banda sonora de Keiichi Okabe – das melhores que ouvimos nos últimos anos – escapa a um certo sentido de deja vu, recuperando o mesmo tom lírico melancólico e a mesma fusão de música erudita, electrónica e étnica do original. Nesse sentido, Automata parece-nos só um remake polidíssimo do menos que perfeito Nier, ainda que por isso mesmo, um remake com maiores perspectivas de sucesso comercial e crítico. Apesar de ser uma história sobre a eternidade da dor, Automata fecha com uma mensagem de esperança na Humanidade; uma em que o jogador, num dos mais vanguardistas exercícios de destruição da quarta parede desde Metal Gear Solid, é convidado a participar activamente. Donde, por favor participem. Joguem Nier: Automata, e quando chegar ao fim, ajudem a restaurar a fé de Taro na bondade do coração humano. É por uma boa causa.