“(…) Take the time to walk a mile in his moccasins” é uma citação da poetisa Mary T. Lathrap, que nos coloca o ónus de não julgarmos alguém sem sabermos como é viver a sua vida. Não sei se foi a pensar na facilidade com que com toda a nossa naturalmente falhada Humanidade tendemos a olhar apenas para um lado das coisas, que a equipa do estúdio australiano Powerhoof desenvolveu Crawl. Mas acertou em cheio na metáfora.

Depois de dezenas de roguelikes passarem pelas minhas mãos e pelo meu escrutínio, é pacífico admitir que este é um dos meus géneros favoritos e aquele que mais despreocupadamente jogo.

Os roguelikes são um dos géneros de videojogos em que ninguém se preocupa com o contexto ou com um pressuposto enredo: estamos aqui pura e simplesmente para desbravar masmorras, apanhar itens e tentar sobreviver. A ninguém se exige uma história complexa para um retro roguelike ou uma explicação da nossa missão. Mais ou menos o equivalente de alguém ficar indignado porque não consegue manter a suspensão da descrença no Tetris porque não percebe o porquê daqueles blocos caírem do céu.

Sem cair em tendências pós-racionalistas, os roguelikes não precisam de explicação, porque “são”. “São” simples, divertidos e remetem-se à simplicidade da sua missão. Crawl decide atirar uma série de novos ingredientes para dentro do tacho que o compõe, e entrega-nos de bandeja algo diferente, um retro roguelike cooperativo/competitivo que coloca 4 jogadores (ou pelo menos 1 jogador e o restante controlado pelo computador) a disputar um lugar ao Sol, que é como quem diz literalmente: a possibilidades de escapar desta masmorra subterrânea.

Jogos assimétricos não são novidade, mas não no ritmo alucinante deste Crawl já que a história deste jogo é simples: o primeiro de 4 jogadores a conseguir chegar a nível 10 e a derrotar “A Besta” terá direito a voltar a ver a luz do dia e a fugir. Para isso vamos oscilando entre controlar o herói, no típico dungeon crawler em que vamos matando tudo o que nos aparece à frente para levar a nossa a avante.

Contra nós estão três espíritos, controlados por jogadores e/ou o CPU cujo objectivo é matarem-nos. Para isso podem possuir objectos que existam em cada sala e atirá-los/activá-los contra nós, ou então invocar criaturas nuns pentagramas no chão. Se algum destes três espíritos conseguir derrotar-nos volta então à vida e nós passamos a ser apenas um espírito a tentar derrotar o herói. E assim sucessivamente. Num jogo de gato e rato ou de “tag you’re it” constante em que estamos sempre a experimentar os dois lados da assimetria.

Mecanicamente a ideia de podermos evoluir o nosso herói (quando estamos vivos) e sempre que subimos de nível isso dá aos restantes jogadores “ódio” que podem usar para fazer level up aos seus monstros, e sabermos que a nossa vida está por um fio e que passaremos para o lado de lá da morte, para a inexistência espectral, torna este Crawl um dos mais divertidos multiplayer roguelikes que já joguei.

Depois de três anos em Early Access, Crawl rasteja finalmente para a luz do dia (apesar das catacumbas) com uma brilhante direcção artística em pixel art. O facto de estarmos sempre a cooperar e a competir com os nossos amigos permite bons momentos de gargalhadas, mas também de muitas ofensas proferidas entre riso. É disto que é feita a diversão old school.

Cumprindo a citação de Lathrap, Crawl mostra-nos os dois lados da morte, numa viagem constante entre os dois lados do espelho.