Uma mansão luxuosa, repleta de decorações e quadros, é palco para um baile de máscaras para um grupo de personagens cujas personas e reais intenções se escondem sobre o mistério da sua identidade. Alguém morre, e a suspeição cai sobre qualquer um dos enigmáticos convivas, enquanto trocam olhares por trás do rosto mascarado, sob o corpo ainda quente da vítima. Este cenário é a receita primordial de qualquer whodunit, cujas linhas-mestras foram tecidas e vincadas na nossa história colectiva pela genialidade de muitos autores de mistérios policiais, dos quais Agatha Christie se eleva acima dos seus pares.
É este o ambiente de The Sexy Brutale, o misterioso jogo das mãos enluvadas do estúdio Tequila Works e que nos é quase vendido como um whodunit desde a revelação do seu trailer de apresentação. Mas perante todo o seu ambiente misterioso e fantasioso, aquilo que vos posso garantir – ainda recuperado da valente experiência que é jogá-lo de fio a pavio – é que The Sexy Brutale tem muitos elementos de um whodunit, é em muitos aspectos um whodunit, mas eu preferia apelidá-lo de algo diferente, e fazendo uso de um neologismo chamemos-lhe um whosavedit.
A composição deste mundo circunscrito a uma mansão inglesa tornada Casino é fácil de compaginar, e percebemo-lo logo nos primeiros minutos após acordarmos na pele de Lafcadio Boone, um padre de cabelo branco e com uma máscara branca com uma mão ensaguentada a vermelho a decorá-la.
Ainda no chão somos visitados por uma figura de uma mulher que aparenta ser composta de sangue, e que emerge de uma poça vermelha no chão. É ela a nossa misteriosa anfitriã, que nos fala do poder incomensurável do Marquês e da sua intenção de assassinar todos os convidados desta festa macabra.
Na capela ao fundo do corredor onde acordamos vemos um conhecido nosso, Reginald Sixpence, genial relojoeiro, através do buraco da fechadura, também ele a envergar uma máscara, mas esta composta por um mecanismo de um relógio. Segundos depois de um diálogo entre este e uma figura que não conseguimos ver pela fechadura, dá-se o disparo de uma caçadeira e o homem com a máscara de relógio cai inerte no chão.
É neste momento que o místico Groundhog Day/Majora’s Mask que é este The Sexy Brutale se inicia, com a Mulher Sangrenta a mostrar-nos que o relógio de bolso da defunta primeira vítima permite voltar o tempo até ao meio-dia do fatídico dia.
A nossa missão é clara: ao longo das doze horas de sábado vão ocorrer 10 assassinatos, e a nossa missão é simples: conhecer o trajecto das vítimas e dos assassinos (quando existem) e impedir as suas mortes. Se falharmos basta-nos voltar atrás no tempo e tentar novamente resolver o puzzle que corresponde às suas mortes.
Há apenas um grande problema: a Mulher Sangrenta deu-nos o poder de sermos invisíveis a toda a gente que habita a casa, mas isso implica que temos de estar o mínimo tempo possível na mesma divisão que elas, sob pena da nossa máscara nos queimar. E quando estamos na mesma divisão que qualquer outro personagem não conseguimos interagir com nada que não sejam portas para sairmos da divisão.
Resolver cada assassinato e impedir cada morte leva a que a vítima retire a sua máscara e nos dê de oferta. Cada máscara tem poderes associados que vão permitindo aceder a novas zonas da casa ao estilo metroidvania adaptado a aventura-gráfica. O grande twist ideológico deste jogo é que nós quando temos sucesso em salvar alguém, na prática, não a salvámos definitivamente. Quando voltarmos atrás no tempo para resolver o próximo assassinato vamos ouvir o mesmo tiro de caçadeira às 4 da tarde, vamos ouvir o sino que anuncia o suicídio de uma personagem, ou a quebra de electricidade ao final do dia quando um personagem é eletrocutado. Apesar de estarmos a avançar na história e de estarmos a salvar progressivamente cada vítima, estamos apenas a isolar um momento temporal paralelo em que obtemos o que queremos delas e de alguma forma lhes damos redenção. Uma benevolência interesseira que é sistematicamente lembrada no decorrer de cada dia. O tiro de caçadeira, o sino, o corte na luz. São quase um compasso simples sempre demarcado na nossa mente e na alma de Boone, que quase parece sentir a sua incapacidade de salvar todos os dez convidados nas curtas 12 horas do dia, momento em que o dia termina e o ecrã se enche de chuva de sangue, anunciando que o relógio de Sixpence vai novamente levar-nos atrás no tempo.
Mecanicamente o jogo é simples, e mesmo tendo trejeitos de aventura-gráfica (pega neste item, interage ali) e com os itens que possibilitam interacção devidamente demarcado, senti que a dificuldade não é muito elevada. Em 4 horas seguidas comecei o jogo e só pousei o comando quando salvei o último convidado e desvendei o segredo de The Sexy Brutale, cujo twist esperava desde o último terço de jogo.
Mas são 4 horas tão genialmente conseguidas. Não consigo perceber se a minha destreza e a quase simplicidade dos puzzles são reflexo das minhas quase três décadas de aventuras-gráficas, ou se a dificuldade é realmente simples para todos, mas percebemos que os autores quiseram que fosse uma batuta a demarcar a evolução da narrativa e que servisse como fio central de uma história de pecado e redenção que se vai descortinando dentro das paredes aristocráticas da mansão.
Facilmente The Sexy Brutale tornou-se um dos meus jogos favoritos do ano, ocupando neste momento o lugar de segundo melhor jogo que joguei este ano. Dificilmente será arredado do top, tal é a adequação da duração e construção do mundo que a Tequila Works desenvolveu para este jogo. A duração de cerca de quatro horas (sem ter todos os coleccionáveis) não é a mais nem a menos, é a medida exacta no qual The Sexy Brutale brilha em todo o seu esplendor.
A direcção artística e ambiente musical não poderia ser melhor, e rapidamente me senti embrenhado por todo o misticismo quase steampunk de The Sexy Brutale. E é uma forma excelente de suportar um dos jogos mais criativos que tive o prazer de tocar nos últimos meses.
O único problema que ele tem para mim? Com alguma aparente mesquinhez admito: o título. É muito fácil que qualquer pessoa (como eu) mergulhe no jogo ludibriada da sua tónica pelo título e pelo visual aparentemente simpático do elenco. The Sexy Brutale não tem nada de suave, e poucos são os momentos em que existe algo minimamente risível em todo o jogo. Quase todo o ambiente, e cada ambiente palpável é o de pecado e redenção, de arrependimento e de inevitabilidade, de destruição e desespero.
Salvar cada um dos convidados tendo a certeza que nenhum deles foi realmente salvo, e o peso dessa consciência na óbvia demanda de redenção de Boone, enquanto conhecemos o seu martírio, materializado em cada minuto de jogo.
The Sexy Brutale é um dos grandes jogos deste ano. É completamente obrigatório para qualquer jogador, e ainda que o seu enredo acabe por desenrolar-se em direcção ao expectável, há uma genialidade e inteligência intrínsecas em cada pequeno detalhe do jogo.
Quando o mercado dos videojogos parece saturado e sem ideias, são jogos como The Sexy Brutale que demonstram o quanto o caminho da Arte e da narrativa pode ser trilhado com o máximo de engenho. E relembram-nos esta paixão exacerbada pelos videojogos, e a sua incomparável capacidade de nos mergulhar nas melhores das histórias.