Ter medo da cegueira é quase uma extensão do nosso temor primordial do escuro. No fundo, perder a visão é uma escuridão eterna da qual não conseguimos fugir e que demonstra o valor verdadeiramente vital que damos ao reconhecimento visual do mundo. A forma como encaramos a nossa visão faz-nos muitas vezes esquecer tanta gente pelo mundo fora que pegou na desvantagem biológica da cegueira e transformou-a em força, demonstrando a perseverança humana em ultrapassar obstáculos.

Ter protagonistas cegos que demonstram como conseguem viver o seu dia-a-dia, ainda que reconhecidas as dificuldades, são muitos. Por ter começado a ler BD desde muito pequeno, o Demolidor (o Daredevil nas traduções luso-brasileiras) era o exemplo máximo, onde o terrível acidente que ele teve na pré-adolescência dotou-o de um sistema de eco-localização sobre-humano mas semelhante ao dos morcegos.

Quando há alguns anos li sobre Daniel Kish, um dos maiores especialistas em eco-localização humana, e que desenvolveu essa técnica para ultrapassar a perda dos seus dois olhos ainda bebé, senti que estava na presença de uma espécie de Matt Murdock da vida real. E de repente o que parecia sobrenatural era cientificamente explicado e aplicável.

Fazer um jogo sobre a cegueira é algo que diversos estúdios indie já tentaram. A Blind Legend, Pulse e até Stifled trouxeram formas de “ver” o que não vê, representando a cegueira com alguns estratagemas mecânicos de game design.

Perception, desenvolvido por veteranos da indústria que desenvolveram jogos como BioShock, BioShock Infinite e Dead Space é mais um que tenta incorporar o género de terror e multiplicar o seu efeito com a componente da cegueira.

 Em Perception controlamos Cassie, uma jovem cega que decide ir até uma mansão abandonada porque esta lhe aparecia de forma recorrente em pesadelos. Catarse ou coragem desmedida, são os dois pratos da balança que pesamos antes de nos aventurarmos na pele dele numa casa que sabemos e sentimos de antemão que está abandonada. Este é um jogo segmentado por capítulos, e mais do que um jogo de terror é uma antologia de diversos contos de horror que colidem num ponto coincidente: a casa.

Para nos locomovermos pela escuridão temos de utilizar a eco-localização, e para isso temos de ir batendo com a bengala de Cassie para que a onda sonora nos permita “ver” o espaço à nossa volta. É claro que no meio da escuridão e do quase silêncio, são os pequenos sons que nos vão aterrorizar, seja o vento nas frestas dos estores ou as portas que se fecham com violência atrás de nós, seja a consciência de que existe algo na casa que não está muito feliz com a nossa presença.

Ironicamente essa entidade unicamente conhecida como Presence, é uma figura espectral que aparece na casa quando fazemos demasiado barulho, seja nas interacções com alguns objectos seja se abusarmos das pancadas da bengala na mesma zona. Mas quando a Presence surge temos a possibilidade de interagir com alguns elementos da casa para nos escondermos até que a figura desvaneça.

Nesta antologia de histórias vividas por Cassie (e por nós) a mansão vai mudando de aspecto de capítulo em capítulo reflectindo o período histórico em que a acção decorre. Obviamente que explicar o porquê desta confluência de narrativas seria estragar a experiência de um jogo que vive quase única e exclusivamente da sua capacidade de criar o build up de tensão até culminar no desfecho e na explicação do porquê de tudo.

Um factor curioso que surge neste Perception é a forma como as emoções de Cassie são incorporadas mecanicamente, seja pela pergunta inicial se queremos que ela seja faladora e constantemente comente coisos consigo mesma (e connosco) ou se ela deverá ser silenciosa e dizer apenas o essencial. As silhuetas do que nos rodeia diferem muito da tensão de Cassie, sendo que usualmente vemos o jogo quase todo em tons de azul. Quando algo se aproxima as silhuetas ficam amarelas e quando Cassie está em pânico total o ecrã enche-se de formas avermelhadas.

Apesar de existir esta carga de jogo gato-e-rato ao estilo de Alien: Isolation, em Perception raras são as vezes em que nos cruzamos com a Presence. A nossa exploração pela casa vai-nos permitindo descortinar o enredo (na maioria das vezes auxiliadas pelo “sexto sentido” de Cassie que funciona como um farol a indicar a direcção em que devemos ir) e interagir com muitos documentos e objectos (nos quais utilizamos uma app que lê texto em voz alta), mas que raramente provocam um volume elevado o suficiente para despoletar o aparecimento do nosso “antagonista”.

Tendo um peso tão importante na narrativa, Perception falha em conseguir criar um enredo interessante o suficiente para justificar toda a construção à sua volta. Até a cegueira de Cassie e as suas habilidades de eco-localização se tornam um pouco underplayed e não representam sequer parte do quase inexistente desafio deste jogo. Perception tem uma história, aliás, várias histórias para contar. Mas nem o mistério nem o terror delas permitem-nas crescer em qualquer um dos subgéneros. E fica aqui uma boa ideia de jogo, com um desenvolvimento interessante, mas que falha nos seus objectivos iniciais e apresenta-nos uma história mediana mas esquecível.