É usual associarmos ao terror alguns elementos do sobrenatural, criaturas ou entidades místicas e virtualmente imparáveis cuja maldade encarnada é suficiente para despoletar o caos na vida dos personagens sobre o qual a sua crueldade se abate. Ou por outro lado a visão de um serial killer, retorcido nas suas intenções e com a alma negra a vomitar sofrimento para cima das vítimas. Mas normalmente o terror esquece-se do rotineiro e do quotidiano. O mundo real.

E não falo apenas daquele em que pessoas são apedrejadas vivas como retaliação legal, ou mutiladas em nome de tradições. Falo dos avanços médicos e dos tropeções que a Medicina foi tendo, tendo como um dos mais negros a forma como até há algumas décadas os doentes psiquiátricos eram tratados, ou aliás, torturados.

Quando mergulhei em The Town of Light esperei de imediato a mesma tensão que um filme do Jaume Balagueró nos traz. Na linha ténue entre a loucura e o sobrenatural (ou o inexplicado), criando um ambiente negro e aterrorizador e cheio de sustos e afins.

Mas este jogo não é um jogo de terror, não no sentido em que estamos à espera que o seja. Não existem sustos nem elementos fantasmagóricos para nos assombrar o sono e se existe algo que o faça é algo bem mais pesada e mais permanente que o efeito efémero do terror habitual: a consciência e o contacto com a dura realidade.

O estúdio LKA avisa-nos disto mesmo logo no início. The Town of Light é uma história baseada em factos reais sem que a sua história específica seja verdadeira, relatando aqueles anos no Hospital Psiquiátrico de Volterra, na Toscana, não só do que eram as suas práticas mas também do que se passava um pouco por toda a Europa e os EUA. Desvendar a história de Renée é descobrir as atrocidades que a Medicina perpetrou em nome de uma cura que estava longe de ser alcançada.

Como é apanágio dos jogos narrativos na primeira pessoa, The Town of Light é relativamente linear, na medida em que seguimos os carris que desembarcam nas devidas estações, permitindo que capítulo após capítulo o fio do enredo se desenrole.

Com poucos puzzles disponíveis (e nenhum deles verdadeiramente difícil), sem termos de fugir ou lutar, ou sequer cruzar-nos com qualquer outro personagem – exceptuando obviamente nos flashbacks sobre o destino de Renée. O que fazer e onde ir não são dificuldade, já que Renée está a tentar reconstituir os passos que deu no Hospital e a tentar perceber o que é que se passou com ela durante os seus anos de internamento.

As pequenas revelações que vamos tendo das memórias de Renée justificam porque é que os autores sugerem que esta história é destinada a adultos apenas, e não porque contenha imagens excessivamente gráficas, mas porque existem demasiados elementos sórdidos sobre o trauma vivido por Renée no hospital psiquiátrico que vão, dentro da sua ficção, lembrando-nos o total desprezo pela condição humana que os doentes mentais tinham em grande parte do século passado.

O jogo é relativamente curto e está circunscrito à reprodução fiel do Hospital Psiquiátrico de Volterra como ele se encontra nos dias de hoje, abandonado, destruído, e ainda com alguns vestígios dos seus dias de actividade. Esta reconstrução fiel do hospital (pelo que pude apurar por quem jogou o jogo e se deslocou in loco para conhecer o edifício abandonado) serve de quase turismo virtual por um local abandonado que foi abrigo de tanto sofrimento humano.

A história de Renée, como disse, é relativamente linear. Quando encontramos alguns documentos sobre o seu passado e a sua condição mental é possível responder em escolha múltipla às indagações que ela nos coloca, e as nossas respostas vão impactar no desenrolar das descobertas que ela fará sobre a sua própria história.

The Town of Light é duro, e no meu entender bem mais duro que qualquer jogo de terror que nos assusta com jump scares e o medo de uma entidade sanguinária que nos quer matar. É mais duro porque esse é o peso da realidade, quando percebemos a degradação humana progressiva por anos de isolamento e tratamentos mentalmente destrutivos num asilo, quando falamos de violações de doentes mentais, de abortos, de terapias de choques eléctricos, de lobotomias, de isolamentos, de amarras e de sovas, de sufocamentos e de medicação zombieficante, de tudo aquilo que compôs o tratamento psiquiátrico do século passado e a forma como os doentes eram pouco mais do que sub-humanos abandonados à mercê de tratamentos (ditos) cientificamente credíveis e vulneráveis à perfídia de quem os supervisionava. Entre depressões, esquizofrenias ou homossexualidades onde a psicocirurgia criada por Egas Moniz prometia a tão almejada cura mas que era pouco mais do que uma forma de tortura medicamente controlada, que deixava sequelas definitivas ou, em muitos casos, a morte.

The Town of Light é duro porque é real. Não é um avanço magistral do game design nem será tão marcante quanto outros jogos do género. Mas conta uma história que precisa de ser contada e que parece ficar muitas vezes escondida nos calabouços da memória, onde as lembranças envergonhadas da Humanidade apodrecem em silêncio.