Há pormenores para os quais não estamos preparados, e que quando irrompem pelo ecrã acabam por tornar-se uma das mais deliciosas surpresas. É claro que há formas de potenciarmos este sentido de descoberta, numa era em que temos de navegar com cuidado pelas redes para não sermos atingidos com demasiados detalhes que estraguem o impacto de dada obra.

Usualmente são os próprios PRs que na compreensiva necessidade de captarem a atenção de media e público que acabam por expor mais do que deviam, naquele inverso jogo da sensualidade em que se revela mais do que o que se deixa ao espaço da imaginação.

E depois há os próprios media, como acontece com este artigo que estão a ler agora, que muitas vezes pela apaixonada vontade de partilhar uma jóia desconhecida acabam por exacerbar os seus selling points, quebrando, como dano colateral, a possibilidade de ser o próprio jogador a encontrá-lo.

Mas no meio de milhares de jogos que são lançados por trimestre, este despertar de atenção parece-me um preço baixo a pagar para encontrar bons jogos. Foi o que nos aconteceu com este Midnight at the Celestial Palace.

Encontrado completamente por acaso nas Discovery Queues do Steam, Midnight at the Celestial Palace captou-me a atenção pela sua abordagem clássica e retro da Era Dourada das aventuras-gráficas. Uma hora depois estava a jogá-lo, sem saber que este que é o primeiro capítulo de três planeados me iria ocupar todo o serão e tornar-se uma excelente experiência, infelizmente curta.

Abrimos o jogo para a sala onde nos é apresentado um dos dos protagonistas, Greg, o trintão desempregado, a dever muito à higiene e à ambição, e cujo lema de vida se centra entre estar sentado no sofá a viver o entusiasmo inerte da televisão. A direcção artística é retro, mas não tão “clássica” que pudesse ser confundida com os jogos da LucasArts onde os pixeis bem visíveis constituem das melhores pinturas/animações em pixel art da época. Midnight at the Celestial Palace está num passo intermédio entre essa pixel art “antiga” e os dias de hoje, mantendo a aura retro sem deixar de soar extremamente actual.

Greg, o inútil, acaba por adormecer no sofá depois de percorrermos o micro-tutorial que pouco mais serve do que introduzir os jogadores novos ao género àquilo que são as aventuras-gráficas ou aventuras point ‘n click.

Pela janela entra uma lontra vestida com trajes medievais, que se apresenta como Sir Squiggles, cavaleiro de Dreamania, e que vem vem pedir a ajuda a Greg, o pouco-higiénico, revelando que este é o prometido campeão que salvará esse reino mágico.

É desde o primeiro puzzle (em que temos de encontrar algo comestível no pardieiro que é a casa de Greg) e neste tremendo cliché que nos é trazido por Sir Squiggles que muitos jogos derrapariam por um chorrilho de enfado e de lugares-comuns que garantir-lhes-iam um lugar automático na prateleira escondida do esquecimento.

Mas os criadores de Midnight at the Celestial Palace mostram-nos quase de imediato o inverso, nesse ponto-chave de conquista ou quebra, eles assumem todo o absurdismo típico do género e elevam-no um patamar, transformando-o num musical, no qual os dois protagonistas começam automaticamente a cantar o enredo ao bom estilo de West End.

A meio da música são-nos apresentadas opções de versos, que mudarão o encaminhamento da canção que está a ser cantada, e que mostra o quão bem-escritas são as letras, ao mesmo tempo que são verdadeiramente espirituosas. O voice acting (e singing) é óptimo, o que fica logo provado nestes interlúdios musicais (infelizmente apenas três ao longo deste primeiro capítulo), e ainda que o jogo nos permita fazer skip aos diálogos, Midnight at the Celestial Palace tornou-se um daqueles casos em que queremos experienciar o jogo como um todo, texto e voz na sua óptima interligação.

Este despontar em musical é caricatural mas funciona tão bem em toda a loucura típica das aventuras-gráficas. É o momento excêntrico de muitas séries e filmes que não sendo musicais como um todo despontam em trechos cantados, como se Andrew Lloyd Webber ou mesmo o nosso Lá Féria tomassem de assalto as rédeas de uma produção e desenvolvessem interlúdios musicados para outras obras culturais. Neste caso, um videojogo.

As referências aos jogos clássicos do género não poderiam ficar de fora, sendo o nosso adorado Monkey Island um dos mais óbvios. O elenco é memorável, em especial um dos golpes de génio dos escritores do jogo, que denotam que este é um jogo de e para trintões/quarentões: na reconstrução dos três piratas clássicos do primeiro Monkey Island. Aqui esses três personagens são bem diferentes e demonstram toda a sua postura depressivo-urbana não só com a sua paixão por café como pela aura millennial de refutar estereótipos. Piratas sim, mas esqueçam lá as vossas pré-concepções em torno do que deveria ser, ou não, a vida criminosa nos mares.

Os puzzles são desafiantes, ainda que não sejam excessivamente crípticos, sendo até bastante acessíveis para quem, como nós, tem dezenas senão centenas de aventuras-gráficas jogadas. Sendo que há um pequeno twist do porquê de não observarmos o sidekick como um mero walk-along, mas como um protagonista por si só. Mas revelar porquê só vos estraga a descoberta de um ou dois puzzles.

Sendo este apenas o primeiro capítulo, Midnight at the Celestial Palace concede-nos apenas o prazer de quatro ou cinco horas de jogo em média, ainda que o tenha terminado em duas horas e pouco, o que depende do quão empancados poderão ficar num ou noutro puzzle. E este é talvez o momento mais enfurecedor do jogo, o de o jogarmos de uma assentada e ele terminar a desejarmos mais.

Midnight at the Celestial Palace é tão inteligente e tem uma personalidade própria tão identificativa (ainda que alicerçada nos clássicos) que os seus geniais momentos musicais são apenas o corolário de um jogo bem-escrito, divertido, com um humor sagaz e absurdo, e acessível o suficiente para conseguir cativar uma grande franja da audiência.

Queremos mais de Greg, o campeão de Dreamania, e de Sir Squiggles. Dos piratas hipsters deprimidos e do bardo incapaz de ter uma carreira a solo. Queremos mais desta loucura saudável e afável que Midnight at the Celestial Palace nos trouxe no seu capítulo, sabendo que manter a fasquia nos dois episódios subsequentes é uma grande tarefa para a pequena equipa do estúdio Orrery Games. Mas com a amostra desta primeira parte, uma missão altamente ultrapassável.

E venham mais momentos em que tudo se transforma em musicais, seja no cinema, na vida real, na televisão ou nos videojogos. Midnight at the Celestial Palace provou-nos que não só é um elemento possível como é um verdadeiro momento de genialidade.