Depois de um texto que questiona todo o meu posicionamento face aos videojogos nos últimos tempos, mal seria se tivesse intenções de me estender. Não o vou fazer a falar de Shelter 2 tanto por reforçar a necessidade de afirmação que possam projectar em mim como por, na verdade, tratar-se de um jogo cujo o propósito seja apenas existir em vez de ser colocado nas prateleiras a preço usual de retalho e a decorar ruas de cidades em outdoors (que, para qualquer pessoa que tenha reparado, possa não parecer do mais descabido: o aspecto de Shelter 2 é peculiar, mas igualmente maravilhoso).

Shelter 2 é trabalho da Might and Delight, mais que um pequeno estúdio de videojogos fundado em Estocolmo, em 2010, é um colectivo: plural de indivíduos com bagagem, formação e trabalho em áreas adjacentes aos videojogos. Estas pessoas deixam clara a sua missão, criar experiências interessantes com uma componente visual forte e trabalhada e para efeitos práticos, é isso que tanto Shelter como Shelter 2 são, ainda que a minha decisão de não escrever sobre Shelter se prenda com o que de interessante este tem para oferecer: tem pouco, o pouco que tem vale a pena e a experiência não difere de forma substancial de jogador para jogador, escrever sobre ele seria cortar parte da beleza e entretenimento que este tem para oferecer. Em Shelter 2 funciona de outra forma: se no primeiro jogo nos quiseram mostrar que podemos percorrer um bonito corredor durante uma jornada de cinquenta minutos e ainda assim sentir empatia pelas personagens, no segundo esse conceito é testado num mundo aberto, com uma experiência com sensivelmente o dobro do tamanho. Mas deixemos de quantificar os jogos em tempo e passemos a falar do seu conteúdo.

Em Shelter 2 interpretamos o papel de um lince que terá de tomar conta das suas quatro crias. Para o fazer com sucesso temos de caçar alimento e fugir de perigo. O resto é deixado, elegantemente, a critério do tempo. Não temos local para nos dirigir, listas de tarefas para completar, veículos para conduzir ou forma de jogarmos online com outros jogadores (consultar Meadow da Might and Delight para esse propósito). Alguns poderão considerar as mecânicas integradas no jogo insuficientes e limitadas (que são), mas suficientes para o seu propósito (uma experiência interessante com uma forte componente visual).

Há progressão, mas quase todas as acções do jogador são inconsequentes: ironicamente, também esta a hipocrisia da vida que é, na verdade, parte do propósito deste jogo. Relatar uma instância deste ritual de passagem que é o acompanhar do crescimento de quatro crias da nossa espécie, da forma mais crua e natural possível, dando ao jogador o papel principal e toda a responsabilidade e consequências das suas acções. Quando o tempo chega, no entanto, o sentimento é de missão cumprida mas ao mesmo tempo é altura de dizer adeus. O sentimentos que Shelter 2 procura suscitar não são inovadores, inéditos ou mais intensos que nos outros videojogos, mas é sem margem de dúvidas a tentativa mais honesta e realista de os orquestrar que alguma vez encontrei registada em qualquer medium.

E isto porque Shelter 2 não prepara uma sucessão de imagem e audio talhados para serem observadas por um espectador (como num filme ou cutscenes), ou prepara um corredor com obstáculos simples para contar uma história (como o seu antecessor), mas porque é um conjunto de sistemas onde o jogador é deixado ao abandono, forçado a interagir e inevitavelmente construir as suas histórias, um pouco à semelhança de outros jogos de mundo aberto como (por exemplo) MinecraftNo Man’s Sky, sendo a diferença o propósito e a intenção. Minecraft aspira construir um recreio para os jogadores e os seus amigos, No Man’s Sky explicar sobre a insignificância e pequenez de “ser” e Shelter 2, como dito acima, relatar uma instância do acompanhar do crescimento de crias: algo precioso e que muitos relatam como um ponto de viragem na forma como olhamos para a vida, mas completamente comum e que está constantemente a acontecer ou a iniciar-se para algum ser vivo de qualquer espécie, a qualquer momento e em qualquer ponto do planeta que este habita. E por isso, talvez, deva ser encarado com naturalidade, normalidade. Pelo menos, quando se torna tão transparente neste jogo.

Ainda com essa naturalidade e normalidade a vida acontece e as coisas doem, uma vez que cada acontecimento é permanente e as consequências irreversíveis. No final do arco resta-nos repetir o processo com uma das nossas crias, agora maturadas. Shelter 2 conta com uma lista de colecionáveis que poderá ser completada ao longo das gerações, se é uma tarefa que vale a pena, só o tempo e a minha vontade de lhe voltar a pegar o dirá, uma vez que neste texto não pretendo aconselhar-vos ou não a comprar este jogo, mas apenas falar sobre ele. A mestria no estilo artístico e aspecto geral do jogo é inquestionável, a banda sonora imperdível para quem procura bom som ambiente ainda que a integração de alguns efeitos sonoros deixe a desejar.

À semelhança de noventa por cento dos jogos de mundo aberto, Shelter 2 é tudo menos livre de bugs e pequenas imperfeições, mas nada que condicione a jogabilidade. Este pode ter algo para todos nós se tivermos interesse em vê-lo, mas está longe de ser um jogo fácil de aceitar por palatos mais habituados ao leque de sabores comum da indústria dos videojogos (chocolate, morango e baunilha), principalmente considerando os 14,99€ que se faz listar no Steam Marketplace. Dependendo do que estão à procura, poderá ser satisfatório. Mas como a arte não se deve apreciar com a etiqueta do preço ao lado deixo a minha opinião: é um jogo importante e que tem o que é preciso para maturar e tornar influente.