Há uma explicação plausível para o sucesso crítico e comercial dos jogos da FromSoftware, e da sua incomparável aceitação por uma grande franja de jogadores a nível global. E essa explicação resume-se entre o sentido de oportunidade e timing de títulos que surgem em contra-maré das tendências do mercado mainstream, que foi progressivamente associando a sua própria incapacidade de gerir os níveis e as possibilidades de frustração do seu público em oposição à oferta crescente de videojogos que pejam o mercado.
Este temor pela frustração do público acabou por condicionar conceptualmente as criações de grande parte dos títulos mediáticos, em que um efeito quiçá proveninente das administrações das grandes companhias pairava sob a alma criativa de muitos game designers, de forma a criarem mãos invisíveis (e muitas vezes declaradamente óbvias) a conduzir os jogadores por caminhos simples com o mínimo de potencial frustração possível, criando muitas vezes objectos e obras estéreis auto-consumidas, que pouco ou nenhum efeito à la longue criavam nos jogadores.
A FromSoftware vem arrojadamente quebrar essa tendência, demarcando o seu posicionamento no mercado não pela gestão e aversão à frustração, mas a usá-la como ingrediente integrante da fórmula dos seus jogos. Dir-se-ia que não existe a série Souls (e todos os seus descendentes e sucedâneos) sem a afirmação da frustração enquanto força motriz criativa. Onde outros a evitam sob temor de ostracizar o público, o estúdio japonês assume-o e utiliza-o como o seu principal elemento de venda.
Ao contrário do que muita gente profere pela internet, não podemos afirmar que existe uma verdadeira inovação mecânica ou conceptual da FromSoftware. O que existe é uma direcção muito firme desde o seu primeiro jogo do “género”, norteando as suas criações com uma reinterpretação de elementos estagnados dos jogos de acção tridimensionais da década passada.
A tónica destes jogos que muitas vezes se centravam (e centram) na espectacularidade da acção, da satisfação imediata de disferir dezenas de golpe por minuto e de derrotar centenas de inimigos é que foi alterada para um ritmo mais compassada, em que o frenetismo e a adrenalina constantes dão lugar a verdadeiras danças de paciência entre nós e os nossos adversários.
A dificuldade essa, não é de todo inovadora, mas é em muitos aspectos, nostálgica. Por ter crescido e me ter definido enquanto apaixonado por videojogos na era dos 8 bits, em que Nintendohard era mais do que um neologismo informal, era quase uma chancela de desafio, e em que a dificuldade não era um elemento de venda, mas sim uma característica intrínseca dos videojogos.
Por constrições técnicas (muitas vezes ultrapassadas com as malogradas passwords ou em alguns raríssimos casos com save states) cada jogo era jogado do início ao fim de uma assentada, fosse esse momento final o término do jogo ou o muito frequente Game Over. Cresci, e crescemos com uma dificuldade acima da contemporânea e que estendia a longevidade dos jogos de então muito para além do que é reconhecível nos dias de hoje.
Temos para isto de compreender a tremenda evolução do mercado, e do público, para além do reconhecimento da inflacção e do crescimento económico da massa progressivamente maior de seguidores de videojogos. Um pré-adolescente como eu, na década de 1990, conseguiria um número reduzido de videojogos por ano, o que significava que a dificuldade de cada jogo era salutar porque existia um prolongamento da vida útil do próprio objecto, associado à tentativa de o ultrapassar.
Estar largas semanas ou por vezes alguns meses do nosso muito tempo livre em torno do mesmo jogo, até ao ponto em que memorizámos cada padrão de cada inimigo, cada salto, e em que este ritmo de tentativa erro de progressão e masterização passavam por exercícios de memória mental e muscular.
No meu caso tinha tempo livre, tinha paciência e a vontade para entregar largas horas da minha vida a masterizar um jogo ao ponto de tentar que cada novo jogo me permitisse chegar um pouco mais longe do que na vez anterior, até chegar ao derradeiro ecrã do final do jogo. Havia um sentimento de superação e de conquista na forma como a nossa perícia e empenho permitiam “quebrar” um jogo, uma vitória que nos enchia a alma. Está tónica, tal e qual, é aquele que preenche os jogos da FromSoftware, recompensado-nos a cada pequena e suada conquista num constante equilíbrio entre frustração e recompensa.
Este mergulho em Nioh, o excelente exclusivo da PS4 criada pelas mãos da Team Ninja é possivelmente a maior fracção de tempo e dedicação que entreguei a um jogo semelhante. A falta de habituação ou da tal memória muscular ainda não desenvolvida para este “subgénero” levou-me a passar entre 4 a 5 horas (dividida entre vários dias) até conseguir ultrapassar a fase inicial pré-viagem ambiente nipónico de William, e que serve de porta de entrada para o mundo de Nioh.
Sim, provavelmente ao longo de uma semana fui dedicando o total de 5 horas apenas para ultrapassar a sequência na prisão até ao primeiro boss, exasperando a cada morte repetida e a todo a monotonia de ter de percorrer novamente os mesmos corredores e os mesmos inimigos. Verdade seja dita que parte destas mortes se deveram a alguns problemas de câmara que mesmo com o dinamismo desligado decidia ganhar vida e posicionar-se nos piores ângulos, levando-me à morte imeidata. Situação essa que me pareceu corrigida com o primeiro patch, mas que em nada serve para “desculpar” a minha inadequação a Nioh, ou a Souls, ou a qualquer congénere.
Há aliás uma certa pressão social dentro da comunidade de jogadores em relação aos jogos da FromSoftware, assumindo-os como um certo entitlement de bom gosto e de verdadeira paixão pelos videojogos. Como se a falta de ligação a estes jogos demonstrasse um sentimento de inferioridade num concurso de “vamos perceber quem gosta mais de videojogos” que ninguém pediu nem quer medir. Até hoje nunca passei nenhum jogo desta nouvelle vague de jogos “difíceis”, mas em contrapartida terminei Contra com apenas 3 vidas, os 3 Ninja Gaiden de NES, Double Dragon, Battletoads, Comix Zone nas consolas originais durante a minha infância/pré-adolescência, para além de uma miríade de jogos difíceis que necessitaram de semanas ou meses de dedicação para serem ultrapassados, em que cada Game Over não me enviava de volta para o último checkpoint mas para o ecrã inicial do jogo.
Eu reconheço que há um tremendo valor nos jogos da FromSoftware, reconhecível até na forma como a Team Ninja decidiu enveredar por esta via de game design e este subgénero, percebendo-lhe as potencialidades e os possíveis caminhos de execução. Depois das 10 horas de jogo de Nioh percebi que aqui está um tremendo jogo dentro das balizas deste novo género, onde a vibrância artística e o ambiente nipónico lhe conferem uma linguagem única e o afastam da mera ideia de uma skin de Dark Souls com a cultura japonesa. Que era aliás um risco que o jogo incorria na sua fase inicial, onde a torre medieval percorrida durante uma noite chuvosa remetia-nos excessivamente para Souls e quase que funcionava de detractora de aproximação a Nioh.
A complexificação das mecânicas de stances que foi implementada em Nioh demonstra que a seguir ao marco conceptual de Bloodborne é possível trazer algo novo, diferenciador, afastando-se do mero pastiche de Demon’s Souls.
Reconhecendo-lhe o valor técnico e artístico, e até o impacto cultural e conceptual que esta linhagem de jogos neo-nintendohard (ou jogos à la Souls como tantos produtores inserem como argumento de venda) percebi rapidamente que Nioh e os seus congéneres não são jogos que algum dia consiga experienciar como deveriam ser experienciados, e que o tipo de entrega que exigem e retorno que entregam funciona numa combinação que me é familiar, e que resume facilmente os meus primeiros 5 anos de jogador.
Incorrendo no risco sempre incontrolável e injusto das generalizações, sempre senti que este entusiasmo e adoração (justificáveis e identificáveis qualitativamente) por Souls e demais jogos como Nioh, partia de uma geração que mergulhou nos videojogos de forma séria dentro ou após a geração da PlayStation e Sega Saturn, ou na imediatamente anterior com a SNES e a Mega Drive, e que viveram um período de suavização de dificuldade quando comparados com a geração de 8 bits. Há uma vivência na primeira pessoa deste sentimento engrandecedor de recompensa após uma provação que Souls e demais jogos trazem (especialmente quando colocados em oposição com grande parte dos jogos mainstream desta década) que eu e os muitos trintões e quarentões que por aí andam já viveram com os Contra, os Battletoads e os Ninja Gaiden desta vida. E que facilmente observamos este nível de desafio como algo que deixámos no passado, e que é perfeitamente desajustado com as nossas expectativas pessoais para com os videojogos.
Tem de existir uma pré-disposição mental e emocional para esta entrega e dedicação de masterização constante de um jogo que eu tinha quando era mais “novo” e que hoje simplesmente não tenho. Dedicar 5 horas da minha vida a tentar passar a fase inicial do jogo fez-me imediatamente reflectir o balanceamento entre diversão, dificuldade, recompensa e frustração. Entre os meus 3 empregos, a minha mulher e o meu filho, o trabalho do Rubber, e o poucotempo que dedico a mim mesmo e a projectos futuros, dedicar 5 horas para passar a fase inicial de um jogo ultrapassa a barreira da recompensa emocional, e torna-se facilmente um luxo injustificável. 5 horas é o suficiente para experienciar uma boa aventura-gráfica indie, ou em extremo, para fazer 1 ou 2 partidas de um RTS que esteja instalado no computador, ou ainda para efectuar a tarefa perfeitamente vazia de evoluir personagens no Pokémon, mas que traz um factor de relaxamento e de esvaziamento mental que Nioh e afins nunca poderiam entregar. Mas tudo isto se reflecte com o nível de entrega de um jogo: em Souls as 5 horas são passadas intensamente em momentos de tensão e stress, que vêm apenas adicionar ainda mais carga ao já muito peso mental que tenho no dia-a-dia.
Reconhecer-lhe o valor e a qualidade e admitir que nem Nioh nem o subgénero onde se insere se destinam a mim equivale ao apologético “não és tu, sou eu” que caricaturalmente conhecemos. O mérito de Nioh é o de conseguir conferir uma série de estímulos a quem os joga e consegue usufruir dele, mas pessoalmente a diversão não é, nem foi um deles.
Nioh, como excelente jogo de acção que é merece de um investimento de tempo que eu não estou disposto a dar. Mas como crítico do facilitismo que tolda grande parte dos lançamentos mais mediáticos, é de salutar perceber que não só existe uma grande aposta de grandes companhias (como a Sony PlayStation, que já o tinha feito com Bloodborne) e de grandes estúdios (com a contracção do interesse em Dead or Alive e em Ninja Gaiden, a Team Ninja pode ter encontrado aqui um filão a explorar nos próximos anos) em fórmulas menos convencionais e menos seguras. E que apresenta a PS4 a lançar o seu segundo título exclusivo de peso e com tremenda qualidade, a menos de 1 mês da chegada de Horizon Zero Dawn.