São casos como os de Gorogoa que fazem valer a pena as dívidas de hora de sono pela vida perfeitamente amadora que vivemos para com os videojogos. Digo-o não só na acepção pro bono do nosso trabalho enquanto críticos, mas sobretudo pelo entendimento apaixonado, dedicado, enamorado pelos videojogos e pelo que os rodeia. Gorogoa não é uma daquelas pérolas que descobrimos e que mais ninguém encontrou no meio da areia, mas uma gema que, a bem da Arte, foi universalmente recebida com a dignidade que merece.
Em muitos aspectos Gorogoa foi para mim – e acredito que para muitos críticos e jornalistas por esse mundo fora – o equivalente àquele cliente que entra num bar quando já os empregados estão a limpar o balcão, a fechar as garrafas e a colocá-las na prateleira. Mas esse cliente, que insiste que vem beber apenas um copo e que vem agitar uma rotina que parecia já estabelecida com tudo o que havia a arrumar já devidamente colocado no seu lugar, traz algo mais que apenas desinteressada clientela. Com ele traz uma história única para contar, em que os empregados se vão circundando à sua volta, sorvendo as suas palavras ao mesmo tempo que o cliente saboreia lentamente a sua bebida, intercalando cada trago com a continuação da sua história. O que parecia inicialmente ser apenas um cliente que entra no bar com as portas a encerrarem, revelou-se o portador de uma das mais maravilhosas histórias que a “plateia” à volta poderia contactar.
Gorogoa surgiu já as contas de praticamente todos os media estavam feitas para quais seriam os melhores jogos do ano. Apareceu, timidamente, já Dezembro ia avançado e os olhares estavam quase todos postos nas Festas, para lembrar-nos que até cair o pano ainda há espectáculo. Que um dos jogos do ano não precisava de ser hiper-mediatizado, ou de provir de um colosso da indústria, ou sequer de ter vergonha de si mesmo num ano em que titãs de extrema qualidade se digladiaram pela nossa atenção, num dos anos de maior qualidade de sempre da História dos videojogos.
Desenvolvido ao longo de 6 anos por Jason Roberts, Gorogoa é uma peça autoral, carregada de uma linguagem artístico-narrativa própria que nos acompanha como uma camada de múltiplas leituras do princípio ao fim. Sem recorrer a uma única palavra, Gorogoa consegue criar uma miríade de entendimentos na sua história carregada de misticismo e espiritualidade sem nunca condicionar a nossa interpretação. A abertura comunicacional deste jogo é um porto difícil de chegar, onde a ambiguidade é levada para além do final do jogo, para o diálogo e a reflexão sobre ele e sobre o que realmente aconteceu com o seu protagonista e a sua busca indefinida por algo transcendente.
Mecanicamente este é possivelmente um dos exemplos de maior inteligência na construção estrutural de um jogo que já tive oportunidade de conhecer. Se os puzzles de Gorogoa fossem tangíveis eles seriam uma complexa construção de peças de dominó a acompanharem diversos cenários, com o circuito desenvolvido meticulosamente e em que cada peça é colocada como parte de uma sequência coesa do primeiro ao último momento. A forma como foi construído assemelha-se a um complexo e inventivo mecanismo de relógio microscopicamente afinado, em que todas as rodas dentadas estão colocadas num ponto em que encaixam perfeitamente umas nas outras e permitem aos ponteiros rodarem.
Gorogoa é um jogo para se jogar num trago, porque o mindset necessário a submergir na sua lógica tem de ser plantado, cultivado e desenvolvido em sequência. Compreender a estrutura de interacção com as 4 vinhetas quadrangulares dispostas num quadrado, e como a exploração criativa da orientação e interacção dessas mesmas vinhetas vão descortinando o jogo e resolvendo os puzzles é algo que é dificilmente explicado, mas que é tão facilmente apreendido quando estamos em simbiose com este mundo plástico criado por Roberts.
Artisticamente divinal, Gorogoa apresenta um detalhe e um requinte visual que o aproximam mais da linguagem de um exímio álbum de banda-desenhada experimental europeu do que o que esperaríamos de um puzzle game que vive muito da não-linguagem textual e da nossa gestualidade.
É praticamente impossível não ficar perdido nas muitas vinhetas desenhadas à mão por Roberts e não ser absorvido para aquele mundo, e sentir Gorogoa como aquilo que ele realmente é: um obra máxima da aura autoral da obra-videojogo, e um símbolo da paixão e do amor de desenvolvimento de um objecto artístico como este. Os momentos de satisfação para quem o joga são múltiplos: a visual, pela exploração que os nossos olhos fazem da brilhante arte do autor, e intelectual, quando conseguimos descortinar os puzzles escondidos na estrutura das vinhetas.
Num ano de sobeja genialidade, Gorogoa vem afirmar-se como um dos exemplos da maturação artística e cultural do meio. Um dos grandes jogos obrigatórios do ano, e um dos videojogos mais delicadamente trabalhados que conseguimos sentir e ser parte de cada fio invisível que mantém toda a sua inteligente estrutura una.