Ninguém nasce vilão. Bem pelo contrário, no ponto de vista dele, é ele que é o herói, e não existia melhor história a mostrar que isso que o fantástico Superman: Red Son, escrito por Mark Millar e editado pela DC em 2003.
Sem querer estragar a quem não leu, conta a história alternativa em que a nave que traz o Superman cai na Ucrânia soviética em vez de Smallville e ele é criado e apresentado como exemplo supremo do ideal socialista. Eventualmente acaba por controlar quase todo o mundo debaixo do seu olhar enquanto é constantemente atacado por Lex Luthor e o decadente Capitalismo Americano. Esta mini série em três livros, depois compilada num único volume, tem muito mais que esta pequena sinopse mostra e é a minha favorita da DC Comics. Apesar de ser um grande fã dos livros e personagens desta empresa (que mais cedo ou mais tarde vai ser comprada pelo Overlord Disney) já há muito que deixei de ler a continuidade de títulos mensais porque é uma confusão absurda que eu já não tenho tempo ou idade para pensar nisso, prefiro histórias contidas em pequenos números, como Red Son, Kingdom Come, The Long Halloween ou Justice.
A DC Comics durante muito tempo teve hábito de fazer os chamados Elseworlds, mas quase sempre se centraram em Batman com pequenas diferenças, Batman com os poderes do Superman, Batman atrás do Jack the Ripper em Londres Victoriana, etc. em quase nenhum deles há uma alteração da personagem suficientemente interessante, são practicamente as mesmas histórias num cenário diferente. Contudo há escritores que às vezes fazem coisas fora do normal, mesmo que não seja nos mundos de Elsworlds. Em The Long Halloween de 1996 por exemplo, Jeph Loeb reescreve a criação de Two-Face (que veio a inspirar grande parte do segundo filme da trilogia de Christopher Nolan) numa espécie de Film Noir em BD, no qual Batman é apenas um detective, vestido de um modo invulgar mas quase Humphrey Boggartiano, se assim o posso chamar. Em Kingdom Come de 2006, Mark Waid alicerçado na arte fantástica de Alex Ross, conta uma história de um futuro alternativo em que os heróis clássicos voltam à ribalta depois de terem desistido da humanidade à luz do aparecimento de novos mais violentos e adaptados à era moderna. Além de desenhar, Alex Ross também escreveu com Jim Krueger o fantástico Justice de 2005, em que os “vilões” deixam os seus métodos e passam a ajudar a humanidade roubando o lugar dos que habitualmente o faziam.
Alguns destes Elseworlds e outras histórias individuais são agora parte da continuidade canónica chamada New-52 em que há 52 terras paralelas e cada uma tem a sua particularidade sendo a Terra-1, a principal na qual decorrem as aventuras mensais publicadas pela DC. Red Son é a Terra-30, e existe um equivalente com um Superman Nazi está na Terra-10 ou Earth-X. Kingdom Come é outro dos Elseworlds absorvido para este canon ocupando a Terra-22, e na Terra-23 há um presidente americano negro que é também o Superman. Como eu tinha dito no início do texto, Red Son era a melhor história que mostrava como um vilão não se via como vilão, observamos como pouco a pouco ele se torna um ditador impiedoso mas sempre julgando estar a fazer o bem, e é nesta visão realmente alterada da personalidade de Superman que está a maior arma de Red Son, não mete apenas o personagem num ambiente diferente, altera-o em várias facetas.
Em 2013 isto mudou porque outra história, fora do cânone DC mas parcialmente inspirada em Red Son, conta com igual mestria essa viragem de personalidade. Todos sabemos, ou pelo menos é a opinião generalizada que Injustice: Gods Among Us, e agora Injustice 2, são jogos de luta brilhantes, provavelmente dos melhores da última década. Colocando de parte a jogabilidade eximia, onde Injustice prende o jogador e é melhor que a maioria no mercado, é na sua capacidade narrativa coesa, criando um enredo quase sem falhas e que permite explicar tudo, inclusive a existência de 2 personagens iguais (em todo o modo single player, não nas batalhas VS.) assim como motivações e outras razões para lutarem entre eles, ou até porque e como humanos como Green Arrow ou Catwoman conseguem lutar taco-a-taco ao nível físico de meta/super humanos ou outros com capacidades fora de normal como Flash ou Superman.
Agora que acabei a introdução, vamos falar do verdadeiro tema do artigo. As BD de Injustice. Peço desculpa pelos pequenos spoilers para quem não as leu e vai ler, mas por outro lado se já jogaram o jogo, sabem que as coisas correm mal. Se há poucos personagens em Injustice: Gods Among Us é porque a maior parte morreu, ao ler os livros só descobrimos como. Conselho de amigo: leiam com uma mentalidade Game of Thrones.
O jogo dá-nos uma pequena introdução acerca dos acontecimentos que nos levam a ele, cinco anos antes Joker faz com que Superman mate Lois Lane e o seu filho por nascer, e ao fazê-lo detona uma bomba nuclear em Metropolis matando não só a totalidade da sua população quotidiana mas também super heróis e vilões que nela habitavam. Devastado pelo que fez não só mata Joker e saltamos para o inicio do jogo em que a Terra-30 (apesar de não a conhecermos assim) é governada pelo Regime.
Superman começa com boas intenções, ele não quer que o que aconteceu se repita, quer utilizar as suas capacidades e as dos membros da Liga e outros heróis que apoiam o seu ponto de vista para erradicar crime, fome, guerra e outros problemas na sociedade. Mas como muitos outros é a corrupção absoluta do poder aliado a influências externas que o destroem por dentro.
Os cinco anos desde esse acontecimento fatídico que leva ao jogo são contados ao pormenor em cinco séries de BD, originalmente chamadas Year 1, 2, 3, 4 e 5, em que cada uma tem um arco próprio mas inserido na história geral da queda de Superman, desde o ponto em que alguns ainda têm fé e querem que ele se veja como ele devia ser, que se devia arrepender e deixar o caminho para onde se direciona até que todos desistem e simplesmente tentam lutar contra ele. Os livros do primeiro ano estão disponíveis apenas em versão digital mas os restantes também se podem encontrar em formato físico. Além desses 5 anos há outros tal como Year 0 que conta a história e eventos paralelos aos do jogo do ponto de vista de Harley Queen e Injustice 2 que decorre neste momento e dá conteúdo entre os dois jogos. Apesar de ser um grande fã de Paul Dini, criador de Harley Queen para a Batman – The Animated Series, não consigo perceber o fascínio que o público em geral tem nela e como ganhou tanto destaque no mundo da DC. Mesmo assim é através dela que alguns dos momentos mais necessariamente leves dos livros são entregues, como é exemplificado nas suas conversas com Green Arrow no Year One.
Estes momentos e o facto de o nome do covil de Green Arrow e a sugestão de Harley se tornar uma running gag através de volumes e anos é crucial porque toda a série Injustice é pesada. Não é pesada ao estilo dos filmes de Zack Snyder, mas é-o com sentido, a violência nunca é gratuita porque serve para ilustrar os pontos de vista ou evolução de personalidade. Entre as várias mortes como as de alguns Titans na bomba em Metropolis, o esquartejamento de Kyle Rayner pelos Sinestro Corps ou até o espancamento mortal de Oliver Queen, todos eles têm um sentido, foi um esforço feito pela equipa de autores para que não fossem vazias de conteúdo, todas tem uma infeliz razão de ser, mas nenhuma tem o impacto da de Dick Grayson pela mão de Damian Wayne. No jogo sabemos que Nightwing não é o original e que Damian o matou, mais tarde envergando o seu manto, mas o facto de ser a primeira morte no ano 1 (sem contar com as de Joker e da bomba) tem muito mais peso.
Mesmo assim Damian não é o melhor exemplo de um personagem que gradualmente abraça o seu lado negro já que ele é o filho de Bruce Wayne e Talia Al Ghul e foi criado pela Liga de Assassinos, mas é um espelho de quem Superman gradualmente se vai tornar. Seja por acontecimentos ou por influência dos seus aliados, amigos a sua queda é gradual e até deliberada a partir de certa altura, Damian já começa bem fundo no poço.
Uma das coisas que mais me interessou quando joguei foi a razão pela qual Sinestro faz parte do círculo interno de Superman e Hal Jordan se torna parte dos Sinestro Corps. Captain Marvel (Shazam como é chamado agora), Flash, Wonder Woman, Cyborg faz sentido porque eles vêem-no como um exemplo, seguindo-o cegamente e sem questão. Até Black Adam por uma questão de sobrevivência mas Sinestro não arriscaria actividade na Terra, portanto como é que isso aconteceu, e como é que o maior dos Green Lanterns se tornou amarelo?
Tanto um como o outro acontecimento são-nos dados a conta-gotas mas de um modo correcto e mais uma vez tal como a violência em todos os livros, com todo o sentido. A maneira como Sinestro consegue manobrar-se para dentro do Regime manipulando a opinião tanto de Superman e dos outros membros do grupo, até ao ponto de lhe permitirem que torture um membro da Insurgency (o grupo de resistência liderada por Batman) é brilhante, chega ao ponto de Guy Gardner, talvez o mais irascível dos Green Lanterns tentar chamar a atenção de que a aliança não é correcta.
Eu não me quero prolongar e revelar mais momentos sobre as BD, digo apenas que todos estes e muitos mais acontecimentos conseguem dar mais conteúdo a um jogo que já vem bastante cheio. Raramente procuramos uma história num jogo de luta, quase nunca nos interessa porque personagem A luta contra a B. É um torneio, é porque sim… Injustice dá muito mais ao jogador, dá razão, dá motivação e uma lição de worldbuilding e character development a muitos jogos em que isso é realmente importante, mas a BD dá mais, dá-nos uma visão detalhada de como aquele que nos devia proteger, aquele para quem olhamos como um exemplo de o que aspiramos ser, é tão falível como qualquer um de nós, de que nas circunstâncias erradas, todos nós podemos cair num buraco do qual não conseguimos ou queremos sair.
Uma master class em como se o poder corrompe, o que dizer quando temos o poder de um Deus?
Injustice, tanto a BD como os jogos são um óptimo exemplo de como muitas vezes as propriedades intelectuais são melhor tratadas fora da sua casa. Este universo não canônico consegue dar lições de storytelling aos produtores e escritores dos filmes da DC/WB. Não me levem a mal, não sou fã dos filmes da Marvel, porque acho que são sempre os mesmos 3 repetidos à exaustão, salvo um ou outro caso, mas ****-**, é assim tão difícil fazer um filme decente dos maiores heróis alguma vez criados?
Até a CW fez a Liga da Justiça bem. Duas vezes! Tanto no crossover das séries em 2016 com Invasion, e em 2017 com Crisis on Earth-X. As séries nem são nada más, especialmente a mais recente de Legends of Tomorrow, se ignorarmos os dramas românticos típicos do canal, porque… bom… CW.