Mystery Box é uma rubrica mensal de temas-surpresa aleatórios ligados aos jogos e a outros meios interactivos, digitais e não-digitais, apresentada por Isaque Sanches.

Já ouviu falar de Devil Came Through Here?

O filme blockbuster de orçamento astronómico tornou-se uma norma inescapável no cinema. E assim regressa, para assombrar-nos, a velha questão de se o filme tem ou não um autor. E a sua resposta parece ser cada vez menos óbvia. Para além disso: se tem, quem é?

No ecossistema hollywoodesco contemporâneo é quase mais fácil afirmar que o produtor é o autor do filme, não? Quem decide realmente o que se passa num filme é o produtor, não é o realizador. Hoje em dia, o realizador, apesar de tudo, pouco ou nada faz, comparando. Por razões que não vale a pena explorar, no geral parece-me mais fácil determinar se um jogo tem autor ou não. E, mantendo esta linha de pensamento, quando alguém me pergunta por nomes de autores de videojogos hesito em falar de Will Wright, de Warren Spector, de Fumito Ueda, de Hideo Kojima.

Penso primeiro em Mike Bithell, em Jason Rohrer, em Brendon Chung, em Nicky Case, em Ojiro Fumoto.

E no meio destas, a primeira pessoa em quem penso é Remigius (Rem) Michalski.

Devil Came Through Here é uma trilogia composta por Downfall, The Cat Lady, e Lorelai, este último que ainda se encontra em desenvolvimento, criada, do conceito à programação, da cabeça aos pés, por Michalski.

Downfall existe neste momento materializado em duas versões. Não joguei ainda o remake, mas o original surpreendeu-me pelo enredo e sobretudo pelo pacing, coisa rara de se dizer de um point & click.

The Cat Lady, como o remake de Downfall, não é no entanto um point & click, é a sua própria coisa, usa uma linguagem própria.

Em Downfall, um jogo cru, bruto, violento, mas contemplativo, o jogador explora um espaço psicológico na forma de um cenário de um hotel. A ideia em si, não sendo particularmente original, é executada com uma visão artística que nunca se compromete a si própria. Ouve-se a voz do autor na jogabilidade, e embora de vez em quando pareça que esta grita, já não é o caso em The Cat Lady.

The Cat Lady é assumidamente mais surreal, mas mais subtil no seu surrealismo, e mais surreal pela sua subtileza. O mundo de jogo por ser mais subjectivo em pequenas coisas, é mais real. É nos pequenos pormenores, no cenário, nas cores, no diálogo, que o espaço psicológico é desvendado, espaço esse que só vem e que só poderia vir de uma só pessoa.

E é por isso mesmo que Kojima talvez seja ou não o autor dos jogos que assina, não sei, mas que sei que Michalski (ou alguém, pelo menos) é sem dúvida autor dos jogos que diz que criou.

O universo de The Cat Lady é um estado de espírito contínuo, que só faria sentido na cabeça de alguém; de uma pessoa e não de um conjunto de pessoas.

Para ser honesto não amo Downfall, e talvez goste menos de The Cat Lady. O pacing do segundo jogo muito mais demorado, por vezes demasiado para mim, e questiono certas escolhas artísticas. Mas são estas mesmas escolhas que dão valor ao mesmo, e ao seu predecessor, enquanto obra.

Tudo em The Cat Lady, não só o que está nos backgrounds e foregrounds, mas o enquadramento mecânico entre os dois elementos, o posicionamento dos personagens no ecrã de jogo, e a forma como a interação está desenhada, faz parte de uma visão, faz parte de algo maior e está orquestrado para dizer algo. Algo de que não gosto necessariamente, mas que sou obrigado a respeitar.

Só descobri que Michalski estava a desenvolver Lorelai depois de terminar The Cat Lady. E depois disso, para surpresa minha, fiquei a saber que estava a trabalhar num remake de Downfall, que entretanto lançou. Remake esse que usa o mesmo sistema que desenvolveu para The Cat Lady, a mesma estética e a mesma linguagem interactiva, que por sua vez Lorelai também usa e, portanto, cada jogo da trilogia.

Trilogia essa que, espero e fico à espera, transforma-se numa obra coesa e não somente uma futura colecção promoções de Steam.

Recomendo assim que o leitor esteja, como eu estou, atento a Devil Came Through Here.