Há um período da vida da Square que definiu o mercado e condicionou durante algum tempo aquilo que eram as nossas expectativas para com os videojogos. Apesar da pouca expressão que a SNES teve em Portugal, especialmente quando comparada com a sua competidora directa, a Mega Drive, que parecia quase omnipresente na maioria das casas portuguesas, houveram muitos JRPGs que marcaram para sempre o mercado dos videojogos, e a nós mesmos, por arrasto.

Foi uma fase tardia da SNES, já no meio dos anos 1990, que a experiência tremenda da companhia japonesa em desenvolver jogos para um género que ajudou a criar e a estabelecer a levou a lançar dos melhores JRPGs que já jogámos. Seja Chrono Trigger, algum dos diversos e excelentes Final Fantasy, ou mesmo Bahamut Lagoon e os muitos SaGa, há tantos excelentes exemplos nesta geração das potencialidades e qualidades da Square que aquele logótipo já era sinónimo de standard do mercado.

Se muitos dos títulos que a Square criou nesta década nunca viram a luz fora do País do Sol nascente, tantos outros existiram que levaram a que os JRPGs tivessem uma presença global, com a companhia como figura de proa do género.

O mercado, a Square, as plataformas, e até as tendências de consumo mudaram muito desde então. Mas termos visto mais de 20 anos depois deste período áureo dos JRPGs chegar Bravely Default à 3DS, um jogo que não só celebrava este período como era desenvolvido para a Square Enix, e que demonstrava que existia público para esta abordagem.

Lost Sphear, desenvolvido pelo estúdio Tokyo RPG Factory para a Square Enix, recém-lançado para Switch, PC e PS4 vem nesta linha de pensamento: não existe ninguém com maior legitimidade para reviver esse período dos jogos do que a empresa que “criou” o género.

Desde os primeiros momentos percebe-se que é a nós (fãs que se definiram com os jogos da Square para a SNES) que este jogo foi desenvolvido. Uma capitalização da nostalgia misturada com um revivalismo saudável, transladando um género e uma forma de fazer jogos para a actualização técnica que a tecnologia actual permite.

Lost Sphear é um cliché, daqueles que têm tanto de gozo e de avivar alegre de memórias, como daqueles que muitas vezes nos fazem traçar um ar de enfado involuntário. Seguindo o prefácio de pelo menos 90% dos JRPGs, começamos este jogo a conhecer Kanata, o protagonista órfão, e o seu grupo de amigos, que pouco sabem do seu passado.

Esta ideia é especialmente irónica tendo em conta que Lost Sphear, como irão ver mais à frente, fala de memórias, do desaparecimento delas e de como Kanata tem o poder para as reanimar. Crianças ou adolescentes sem ideia do seu passado são o prato forte dos JRPGs, que invariavelmente colocam o peso do mundo sobre os seus ombros.

Poucos minutos dentro de Lost Sphear e somos introduzidos ao mal que ameaça o mundo, ao vermos uma grande percentagem do planeta (a nossa pequena aldeia incluída) a parcialmente desaparecer deixando no seu lugar o branco, que representa o nada. É neste confronto inicial que percebemos que o usual papel do escolhido recai sobre o espadachim Kanata, que de alguma forma tem a habilidade de recolher memórias perdidas, sob a forma de itens e de reconstruir o mundo desta forma. Um caminho que está desaparecido pode rapidamente ser devolvido à existência se tivermos recolhido a memória que lhe dá forma, e assim prosseguir nesse trajecto. Este poder único é algo interessante mas que é superficialmente aproveitado mecanicamente, e esta recuperação de memórias pouco mais é que mero loot de lutas com monstros e bosses ou encontrado em linhas de diálogo ou no chão/em baús. Haveria margem para inovar, para utilizar uma ideia que não sendo única tem imensas potencialidades, mas como em tudo, Lost Sphear aposta no seguro, no clássico, com os pontos positivos e negativos dessa decisão.

O sistema de combate recupera o sistema de Active Time Battle dos jogos da Square dos 1990s, em que cada personagem (aliada ou inimiga) tem uma barra de acção que se vai enchendo, e assim que esteja preenchida tem a possibilidade de fazer uma acção.

Com um sistema de luta simples (mas não tão simples com o clássico estático dos JRPGs), Lost Sphear permite-nos na nossa acção reposicionarmo-nos no terreno para usufruir de buffs de ataques de aliados, ou para nos protegermos de ataques inimigos.  Encontrando um sistema que acabou tornar-se famoso com os RPGs de Mario (o primeiro deles justamente criado pela Square), se enchermos barras de Momentum em cada personagem e se carregarmos nos ataques no momento em que um halo de luz azul brilha, recebemos um bónus de dano. Uma repescagem de sistemas conhecidas, mas que no seu todo, funciona.

Mas em que é que falha Lost Sphear, onde por exemplo Bravely Default não falhou? Na sua capacidade de pegar na nostalgia, tê-la como uma base de trabalho reconhecível e inovar sobre ela. Todos adoramos os jogos clássicos de 16 bits da Square, e Lost Sphear tem esse charme, mas parece-me tão conservador na sua abordagem revivalista que falha em si mesmo uma série de boas ideias que poderiam ter sido utilizadas de forma mais criativa. O sistema de memórias é o caso mais gritante desta contenção criativa.

Lost Sphear é um jogo engraçado para um público definido. Mas a 49,99€ para apenas um objecto reminiscente dos tempos áureos dos JRPGs, Lost Sphear fica curto. Nesta abordagem há JRPGs indies a fazerem um trabalho similar por um décimo do preço. Lost Sphear é sobretudo um sinal de auto-homenagem da Square a si mesma, num acto que rapidamente resvala para uma inesperada autofagia.