Caçada semanal #136
Apreciar um bom prato de comida é um movimento que está quase no mesmo patamar da arte de o confeccionar. Grande parte do mundo acha que algo precisa de ser extremamente rocambolesco com muitos enfeites de gourmet para ser considerado boa gastronomia. Nós, os portugueses, não. Conseguimos apreciar a arte na simplicidade de umas boas iscas com batatas cozidas, ou no sabor sublime de um cozido à portuguesa.
Encontrar e apreciar um bom indie é isto mesmo. Aceitar-lhe essa simplicidade como sinónimo de depuração e não de desfalque, deixar que cada momento da refeição nos preencha as papilas gustativas e nos faça apreciar o que é bom pelo que ele é. Sem necessitarmos de presunção para o termos em consideração e o considerarmos bons jogos.
Os 3 indies desta semana são bons exemplos de roguelikes, que para muitos saberão a um exuberante foie gras, mas são sem pretensões um maravilhoso prato de bacalhau à Brás, simples, mas dos melhores que já comemos.
ADOM (Ancient Domains of Mystery)
Há pratos clássicos que nos sabem à mais refinada das ofertas de um restaurante com estrelas Michellin. O caso da comida que comíamos em casa das nossas avós por exemplo. A paixão que ganhei por uma comida tão vintage e tão simples quanto açorda, e o quanto trocaria a comida mais gourmet por um prato destes.
ADOM é isto mesmo. Não reinventa a gastronomia nem reimagina o que deveriam ser os roguelikes. Sabe exactamente o que é, e dentro dessa simplicidade soube ao longo de alguns anos em desenvolvimento criar uma das melhores açordas que já comemos. Sem adição de quaisquer artifícios que disfarçassem o seu sabor, prefere que ao darmos a primeira garfada saibamos exactamente o que estamos a comer.
Este é um jogo com 24 anos que começou a ser desenvolvido como freeware. Depois de décadas de sucessos e avanços mecânicos e tecnológicos (que em muito contribuiu a interacção com a comunidade fiel que o jogo tem), acabaria por ver chegar ao Kickstarter e ao Steam uma versão deluxe que trouxe para outro patamar um dos maiores clássicos do género.
Com a honestidade e paixão que lhe é reconhecida, o criador de ADOM, Thomas Bishop, manteve a versão clássica gratuita para download e tendo esta versão com ainda mais conteúdo à venda no Steam. É curioso ver o quanto ainda pode percorrer um dos roguelikes mais acarinhados de sempre, com virtualmente infinitas horas de jogo dentro de si e a ser estendido pelo seu criador com novas armas, masmorras e quests.
A açorda pode ser algo simplista para alguns, mas sem dúvida que para os verdadeiros apreciadores ela pode representar uma das melhores iguarias que poderíamos comer. ADOM é assim também: um dos pais dos roguelikes que continua em evolução até aos dias de hoje, e a lembrar às novas gerações que é possível fazer algo muito bom com elementos simples.
Xenon Valkyrie+
Há cerca de 15 anos, depois de a minha mulher me ter oferecido meio por brincadeira uma tostadeira, acabei por juntar duas coisas improváveis num resultado surpreendente. Uma tosta de queijo flamengo com uma noz de chocolate no centro, que se espalhava e mesclava com o queijo à medida que este derretia. O que à primeira vista parecia uma ideia idiota, acabou por tornar-se a minha tosta favorita. E pensando nisso já há alguns anos que não como uma.
Misturar um roguelike com um shooter platformer bidimensional é algo que à partida parece bizarro. Mas depois de jogar Xenon Valkyrie+ percebe-se que esta não é apenas uma boa ideia, mas uma que com a execução certa (como é o caso) se pode tornar algo que nos prende durante dias.
Visto que foi originalmente lançado para PS Vita antes de cair na PS4 e PC, Xenon Valkyrie+ tem algo de curioso na sua composição visual que é a noção de escala. Com um exímio trabalho em pixel art, os sprites dos personagens são pequenos o que nos leva a termos escala grande de visibilidade de cada ecrã, com os personagens quase minúsculos lá pelo meio. É claro que isto complica por vezes a componente de shooting, mas resulta em termos de enquadramento do cenário.
Há diferenças mecânicas neste Xenon Valkyrie+ que o tornam memorável, a par da sua jogabilidade. Seja o aspecto conceptual de termos de ir de cima para baixo em cada nível, ou no facto de que quando compramos armas no ecrã pós-boss fights não as recebemos de imediato, e apenas desbloqueamos a possibilidade de nos aparecerem no mundo seguinte.
Com sistema de level up, permadeath, diversos personagens jogáveis, níveis processualmente gerados, Xenon Valkyrie+ é um shooting platofrmer roguelike retro surpreendente, tão surpreendente quanto dar uma dentada numa tosta de queijo e chocolate.
Polygod
Polygod é um prato de arroz com bife. Uma das iguarias mais simples que podemos cozinhar, que já comemos infinitas vezes e que mesmo assim consegue surpreender à primeira garfada. Habituados que estamos a tantos outros bifes com arroz, especialmente aqueles que vem acompanhados da desilusão de “comer fora”, ainda temos um espacinho para sermos agradados com uma solução gastronómica simples.
Um roguelike FPS desafiante (ou não fossem praticamente todos os roguelikes assim), que mistura leves conceitos filosóficos e religiosos com toda a sua simplicidade mecânica. Saltar para dentro de Polygod é uma acção natural, em que todos os movimentos e controlos são familiares, e não têm adições barrocas que só o prejudicariam. Para quê acompanhar com rúcula um bife com arroz, se este por si só pode estar bom?
Ainda em Early Access, o que Polygod apresenta é sólido e justo do ponto de vista de equilíbrio com os inimigos. A aleatoriedade dos altares onde podemos sacrificar almas (captadas quando matamos os inimigos) por power ups é um elemento justo que traz alguma diversidade ao jogo.
O seu visual é simples, uma mistura de low poly, mas que funciona, especialmente na sua paleta vibrante e até primária. Polygod é na realidade uma excelente refeição, sem precisar de ser gourmet. E isso é tudo o que queríamos.