Poderia soar estranho afirmar que um jogo com uma abordagem retro como The Red Strings Club é possivelmente a melhor e mais inovadora interpretação do ambiente cyberpunk que os videojogos tiveram, e simultaneamente a mais discreta. Com tantos clichés a reviverem repetidamente os preceitos de Shadowrun ou do infinitamente mais massificado Deus Ex, é impressionante o quão sólido é o world building deste jogo, que envereda, e bem, por um caminho mais filosófico.

Desenvolvido pelo estúdio Deconstructeam, autores de Gods Will Be Watching, uma excelente abordagem aos jogos narrativos retro com laivos de point ‘n click mas distanciados destes, The Red Strings Club consegue chegar ao ponto de afinação que o primeiro grande jogo destes autores não conseguiu. Em Gods Will Be Watching era fácil de perceber que estes três factores existiam mas eram desconexos, sob prejuízo do desenvolvimento e imersão nos temas sérios em que o jogo nos mergulhava, nomeadamente na forma como nos confrontava com a noção de sacrifício e sofrimento.

Ambos os jogos são point ‘n click adventures mas não o são em igual forma. Com elementos que diferem totalmente do clássico do género, especialmente porque é utilizado o ambiente e a abordagem fortemente narrativa mas despida de momentos de puzzle.

Se o balcão de um bar falasse, decerto que teria muitas histórias caricatas para contar. Para muitos um barman é a primeira linha de terapia mental, uma espécie de psicólogo não-oficial com um soro da verdade sempre pronto a ser servido, e sorvido pelos clientes. Um barman é um ponto de ligação perfeito para conspirações, e é nisso que The Red Strings Club nos quer provar. Num futuro próximo onde todos os lugares-comuns do ambiente cyberpunk tomam o seu espaço, é possível contar uma história profunda que reflicta o que é afinal a humanidade, e quais os limites do transumanismo e da moral aplicada à Inteligência Artificial.

The Red Strings Club é um magnífico exemplo de ritmo aplicado à excelência do storytelling. Conseguir a densidade filosófica da construção deste mundo e de todas as questões que o circundam tendo como ponto central e quase total o espaço confinado do bar titular demonstra a maturação dos seus autores na interligação ritmo, narração e ambiente interactivo. Com o cerne do jogo a ser entre-cortado com os brilhantes mini-jogos que lhe dão corpo.

O estúdio Deconstructeam foi inteligente na forma como introduziu estes mini-jogos para complementarem a iminência narrativa de todo o jogo, sendo que dois deles eram duas pequenas experiências paralelas que tinham criado isoladamente e que estão gratuitas na sua página de itch.io. O primeiro de todos prende-se com a tónica de todo o jogo (trocadilho não-intencional) em que temos de criar cocktails para condicionar emocionalmente os nossos interlocutores. Este mini-jogo é mais profundo conceptualmente do que mecanicamente. Cada uma das quatro garrafas tem uma seta discreta e é na mistura das várias bebidas que movemos um círculo que será coincidente com a emoção que queremos provocar. Uma ideia difícil de explicar, mas facilmente apreensível em jogo.

O segundo dos três mini-jogos, e para mim o mais interessante, é aquele em que controlamos a andróide no passado recente, no qual ela gere uma loja de aumentos cibernéticos, e onde temos de escolher os melhores implantes para as necessidades de cada cliente. Há tanto subtexto nestas alterações, na forma como um cliente ao qual instalamos supressores sociais para combater a sua inibição eventualmente vai regressar por ter perdido a sua criatividade como consequência. Este é apenas um dos dilemas que este mini-jogo nos coloca e que consegue ser mais profundo do que o que aparenta à superfície. E que consegue de forma tão simples colocar-nos a dúvida sobre o que sacrificamos para sermos “melhorados”. Sê-lo-emos realmente?

Aliás, esse é o segredo de The Red Strings Club. Magistralmente escrito, com um enredo repleto de diálogos complexos e que nos instalam debates internos ideológicos de moralidade, humanidade e a extensão das definições de bem. Um elenco de personagens que dentro da sua pequena estatura social começa a desvendar um estratagema de uma mega-corporação que quer extinguir a depressão e o ódio, condicionando a psique da Humanidade. Algo que parece teoricamente positivo mas que os argumentistas souberam colocar-nos do lado dos prós e contras do assunto, e equacionarmos que uma boa intenção como esta pode ter dezenas de más intenções a suportá-la.

Visualmente espantoso, The Red Strings Club consegue criar um dos melhores e mais sólidos settings cyberpunk quase sem sair dos limites do bar. Um feito tremendo e que o torna um dos grandes jogos narrativos do ano, e um dos melhores jogos de cyberpunk que já jogámos. Um lugar maravilhosamente construído onde somos um barman que é simultaneamente um dos centros de informação da sua cidade e uma andróide semi-destruída cujo pragmatismo e frieza mecânica nos obriga a pensar e a debater internamente sobre questões pesadas da nossa Humanidade.