O país que vende armas de fogo nos supermercados tem tido problemas com tiroteios em massa perpetuados por indivíduos perturbados. Logicamente estão a ser discutidas formas de controlo para limitar o acesso às ferramentas que capacitam este tipo de crimes: os videojogos, está claro.

Pois é, seguindo a onda de nostalgia dos anos 1980 que se vive no cinema e televisão, também os políticos e media decidiram reviver outros tempos. Aparentemente estamos de volta aos anos 1990 e a preocupação à volta da violência nos videojogos reemerge em força nos Estados Unidos, com direito a uma reunião onde o presidente mostra a responsáveis da indústria um vídeo repleto de momentos chocantes.

No entanto, eu vou relegar as questões sobre a influência da violência dos videojogos nos mais novos (ou falta dela) para os sistemas de classificação etária já existentes e para os pais que as fazem ou não cumprir. Em vez de discussões ocas vamos antes explorar os quês e os porquês desta faceta tão prevalente neste nosso meio. Como se explica que o que é tão chocante para o público do Jornal da Noite é algo banal para quem está dentro do assunto?

Sem esquecer exemplos como Pong, Pac-Man ou Lunar Lander, desde os seus primórdios que os videojogos nos colocam a disparar contra inimigos e obstáculos em clássicos como Space War!, Gun Fight, Space Invaders, Asteroids, Galaga e Tank, ou mesmo a atropelar gremlins no já na altura polémico Death Race. Por mais interessante que fosse um jogo sobre criar uma assembleia para discutir medidas e termos de paz com os alienígenas de Space Invaders, a violência é a “solução” (com muitas aspas) mais básica e instintiva que está ao nosso dispor, e embora seja uma má escolha com consequências na vida real, é das jogabilidades simples de implementar e compreender. E na ausência do aspeto das consequências, também discutivelmente das mais divertidas.

O que é encarado como violência também não tem uma definição exata. Eu mencionei Pac-Man como exemplo de jogabilidade diferente, mas quando ele come os fantasmas, ou quando o Mario esborracha Goombas sem qualquer problema, não é propriamente um ato amigável. Mesmo nas aterragens falhadas em Lunar Lander, existe uma tripulação que morre de forma agoniante, mesmo que o único resultado visível seja uma explosão de pixéis brancos.

Os problemas do público convencional prendem-se geralmente com a aproximação à vida real e isto acontece em duas vertentes. A melhoria dos gráficos tornou a violência muito mais realista, principalmente quando inclui momentos sangrentos. Também os temas que se aproximam de situações que podem ser replicadas na realidade, como o caso de jogos onde é possível atropelar outros, criam o medo de emulação. Por isso lançar uma bola de fogo que mata um Koopa Troopa é aceitável para crianças, mas utilizar uma pistola ou faca para matar alguém que parece real, desperta os alarmes. A existência de mundos sandbox realistas, onde o jogador tem liberdade num mundo sem consequências, pode gerar resultados chocantes para quem vê de fora.

O famoso nível No Russian de Call of Duty: Modern Warfare 2 de 2009 estava incluído na apresentação de Trump

Mas não é só na jogabilidade que a violência tem o seu papel. Durante o crescimento dos videojogos como meio, deu-se uma transição do formato de níveis sequenciais onde a progressão significa apenas aumento de dificuldade, para um produto com principio, meio e fim, unidos pela ferramenta universal que é uma história.

Ultrapassando óbvios preconceitos sobre o público-alvo dos videojogos (mais uma vez volto a apontar as classificações etárias nas caixas), as histórias cresceram também não só em tamanho como em complexidade e maturidade. E muitas dessas boas narrativas têm como matéria um mundo onde existem injustiças, violência e sexualidade. O mundo real. O mesmo retrato da realidade dos livros ou filmes, mas onde o jogador tem agência, o fator chocante.

No entanto essa mesma capacidade de atuar, escolher e fazer a diferença num jogo que reflete os resultados na história ou no próprio mundo, é uma ferramenta que pode gerar crescimento pessoal, mesmo quando inclui violência. A adição de consequências virtuais numa plataforma sem consequências reais permite explorar a nossa própria natureza e incluí-la na história. Arrisco ficar perdido no espaço sem combustível ao salvar aquela nave aliada ou ponho a segurança da minha tripulação em primeiro lugar? Desativo a bomba nuclear que ameaça esta cidade ou deixo-me subornar com uma recompensa que me pode favorecer no futuro e vejo a explosão ao longe? Deixo morrer este personagem que já deu provas de não ser de confiança ou salvo-o, arriscando que ele volte para me atacar no futuro?

A combinação de temas maduros e a agência do jogador no seu meio, valeu recentemente a Detroit: Become Human uma chuva de críticas. A inclusão da sugestão de violência contra crianças e brutalidade com uma andróide feminina num dos seus trailers criou discussão mesmo entre a comunidade. Longe de glorificar esta violência, o papel do jogador é o oposto, sendo o perpetrador o vilão. No entanto, os críticos defendem que tal comportamento é inadmissível e não deve sequer ser abordado.

Seja uma polémica sobre a jogabilidade ou sobre a história, banir representações da realidade é uma linha de pensamento perigosa e não é o caminho certo para livrar o mundo de violência. É varrer para debaixo do tapete.

As vantagens de ser “humano” serão postas em questão em Detroit: Become Human

Uma pesquisa sobre videojogos banidos em países revela resultados assustadores sobre o que ainda nos dias de hoje é material censurado para muitos, mesmo em países desenvolvidos. Os motivos são inúmeros: proteção de ideologias e religiões, repressão sexual ou cultural, ou simplesmente por ser considerado ofensivo para algo ou alguém. Deixar que uns decidam por todos o que um adulto pode ou não ter acesso (falando de material legal que não infringe os direitos de outrem, como os videojogos), é abrir caminho a demagogias como o que se passou na Venezuela, onde todos os videojogos com tiros estão banidos desde 2010 para diminuir a violência no país. Não parece estar a resultar.

Para além de distrair, os meios de entretenimento também ensinam, e se as partes negras do mundo forem apagadas, escondidas atrás de óculos cor-de-rosa, aí sim, teremos um mundo dessensibilizado, porque desconhece o que se passa por trás das cortinas da censura.