Em 2012 li The Terror, de Dan Simmons. O livro – sobretudo quando lido com a banda sonora de Sunn O))), que andava a ouvir na altura – é soberbo a criar e transmitir ao leitor um sentimento de frio opressivo. A transmitir o frio de dentro para fora, nos ossos. Na respiração. Na roupa. No tossicar dos que soçobravam, doentes, tentando afastar a pesada sensação que lhes repousava no peito e os envolvia, de que não sobreviveriam. Não viveriam. Não voltariam a ver as suas casas. Morreriam ali, sem voltar a sentir a mais pequena ponta de calor. Frio.
O livro vê agora a sua transposição para a televisão e eu aguardo. Refreio a vontade de acompanhar a série com a de querer vê-la de uma empreitada só, sem demoras, delongas e intervalos. Isso e porque há The Expanse para ver, com La Casa de Papel pelo meio e com The 100 prestes a recomeçar e Westworld aí já ao virar da esquina. Mas está aqui na lista. Omnipresente. Sempre a espreitar pelo ombro. Sempre a assombrar-me. Sempre com o toque gélido a relembrar aquilo que Simmons havia transposto para as páginas de um livro. Frio. Morte gélida.
Chegou-me então às mãos este Frostpunk. Confesso que não o conhecia de antemão, mas a publicidade na Steam fez o seu trabalho. E ei-lo, então.
Frostpunk.
O Sol esmorece. Fraqueja. Winter is coming. Um lento e pesado Inverno abate-se sobre a Terra. Aos poucos, a sociedade vê-se ruir. O combustível e o alimento escasseiam. A mobilidade é reduzida, sob o peso da neve. A doença surge à espreita, ceifa as vidas que pretende e esconde-se, voltando a atacar pouco depois. Frio. Frio. Um pequeno grupo de sobreviventes decide rumar a Norte, em busca de combustível, fugindo dos sarcófagos de neve que restam das antigas metrópoles. Uma fuga lenta pela neve, deixando corpos a enfeitar os rastos da caravana que passou.
É numa razoavelmente abrigada cratera, com um gigantesco gerador a carvão no meio, que nos encontramos. O zunir do frio cortante tudo abafa e contrapõe à lentidão do gelo a urgência da sobrevivência. Há que tratar desta gente. Tratar. Não salvar. Calor. Casa. Comida. Esperança. Um abraço como fonte de calor para as dezenas de pessoas que temos a nosso cargo. Frostpunk é um city builder pós-apocalíptico. Soturno, denso, pesado, frio… a fazer lembrar This War of Mine, The Terror, Sunn O))). A fazer lembrar os bons tempos de The Walking Dead. Mas aqui não há zombies. Não são as mordidelas dos zombies que matam. É a mordidela do frio. A ameaça está sempre presente. A urgência advém da sensação de desconforto que provoca no jogador o ambiente, o som, os pormenores visuais do jogo que nos mostram uma cidade a gelar, enregelar, congelar.
Há que abrigar esta gente. E há que pô-la a trabalhar. Recolher madeira, metal, carvão… Há que alimentar as esfomeadas bocas das pessoas e a mais esfomeada boca delas todas, a da gigantesca fornalha que aquece, que dá esperança, que salva as pessoas dos -20ºC, dos -30ºC, dos -40ºC, dos -50ºC… É um intenso reviver de emoções que relembra a sensação de urgência e ameaça de They are Billions! e que, colocando-nos na pele de líder com decisões difíceis a tomar, nos lembra também as decisões de Banner Saga, por vezes entre o mau, o péssimo e o horrível.
É viciante. Tóxico, venenoso, opressivo, pesado, mas viciante. Fenomenal ambiente criado pela 11 bit studios (sim, os mesmos de This War of Mine), a criar-nos um ambiente Steampunk convenientemente renomeado Frostpunk, em que construímos uma cidade a fazer lembrar as concêntricas cidadelas de outras paragens. Não falta o que fazer e o frenetismo é aguçado pela urgência, pelas vozes do povo, pelo frio, pelo inexorável ciclo de dia e noite que limita a nossa capacidade de agir, de trabalhar, de recolher. O equilíbrio é difícil de manter, entre a recolha de materiais, a pesquisa de novas tecnologias numa tech-tree consideravelmente grande e rica em conteúdo, a organização de grupos de exploração para angariar novos sobreviventes e recursos, a política e a pura condição humana. Equilibrar a esperança com o descontentamento de um povo que se vê a morrer de frio, sendo forçado a trabalhar para sobreviver, para comer, para ter um tecto…
Frostpunk é absolutamente delicioso, transbordando carinho e atenção na forma como foi pensado, delineado e trabalhado. Consegue agarrar o jogador e fazê-lo mexer na cadeira de desconforto quando tem que tomar decisões que custam a vida de pessoas, dos preciosos poucos sobreviventes da raça humana. Há de tudo. Há ladrões, assassinos… mas há quem queira zelar pela ordem, há quem queira trabalhar e ajudar. E há crianças. Cabe-nos a nós liderar esse povo, numa liderança que não é incontestada, que não é dada como certa. Por tudo, pelo frio, mas também pelo radiante calor do amor que salta à vista que foi posto nesta obra, Frostpunk é um jogo obrigatório e, digo-o desde já, um dos meus jogos preferidos do ano.