Não é fácil ser o filho de alguém conhecido, e nem sequer preciso de pensar no Don Trump Jr. para ter a certeza disto. Richard Garriott é um dos mais influentes game designers da História dos videojogos e Ultima figura no panteão dos RPGs que abriram grande parte das portas para o género. Isto significa que qualquer projecto na área que Garriott criasse mesmo que a partir de crowdfunding seria um sucesso quase garantido. Mas como vamos perceber com o seu mais recente jogo, um filho de Ultima corria ser o risco de nunca passar disso mesmo.
Shroud of the Avatar: Forsaken Virtues foi esse projecto, e ainda por cima anunciado como o sucessor espiritual de Ultima. Mas será que esse não será um peso excessivo sobre os ombros de um jogo que surge num mundo onde Witcher 3 é consensualmente o standard?
À partida este pareceu-me logo o problema base com Shroud of the Avatar: Forsaken Virtues, e a sua localização dentro de um espectro de jogos que evoluiu muito desde que iterações de Ultima ainda eram lançadas no mercado. Os próprios MMORPGs, que é a forma como Shroud of the Avatar: Forsaken Virtues se identifica, já tiveram o seu apogeu e já contraíram, com alguns resistentes a marcarem o espaço seguro por si mesmos. Mas tudo isto deveria ser conhecimento do próprio Garriott depois dos excelentes jogos que produziu para a NCSoft, e que apesar da qualidade acabaram por ser falhanços comerciais.
Havia ambição neste Shroud of the Avatar: Forsaken Virtues, aliás, ambição desmedida em alguns aspectos. Não foi apenas o mercado que mudou, o público mudou com ele e vice-versa. Shroud of the Avatar: Forsaken Virtues apela a um tom clássico dos RPGs multiplayer, mas será isso que o mercado queria nos dias de hoje?
A (re)introdução da possibilidade de respondermos e interpolarmos NPCs através de texto digitado é uma característica saudosista que nos parece uma excelente ideia até começarmos a usá-la com frequência. Para aquilo que são as estruturas actuais de MMORPG, esperar que o acervo textual de interacção dos NPCs consiga ser tão vasto que permita respostas de qualidade quase sempre é uma utopia. Isto leva-nos a verdadeiras “caças ao gambuzino” visto que no feel clássico não existe direccionamento para as quests que temos em mãos. O factor “novidade” de podermos escrever o que quisermos aos NPCs e esperar as suas respostas rapidamente cai por terra quando as suas interacções vazias começam a aborrecer-nos por repetição, e a lembrar-nos que provavelmente até preferimos linhas de diálogo pré-concebidas, mas interessantes, a esta falsa abertura que cai no vazio.
Clássica é aliás a melhor forma de descrever o que é que Lord British queria trazer para este Shroud of the Avatar. Um MMO em que se abandonam as árvores de texto contextual de diálogo com NPCs e se substitui pela possibilidade de perguntarmos o que quisermos. Um jogo onde os sempre presentes mapa e bússola são substituídos por mapas adquiríveis e os quais temos de ler segundo as indicações das descrições das quests. E um combate que vamos apelidar de “clássico” apenas para sermos simpáticos.
Visualmente este jogo não poderia ser mais datado, com a sua biblioteca visual a assemelhar-se a um mostruário de assets do Unity tantas vezes utilizados. Neste caso, como em muitos aspectos, de Shroud of the Avatar empalidece em comparação com a direcção artística de excelentes MMORPGs contemporâneos, sendo que a maioria é gratuito.
O preço é pouco convidativo. É possível que Lord British estivesse a tentar fazer cash-in do seu papel de histórico dos videojogos, mas com uma oferta melhor maioritariamente gratuita é muito pouco justificável os 39,99€ que este jogo custa. Aliás, mesmo neste mercado há jogos como Black Desert Online e Guild Wars 2 que são gratuitos nos dias de hoje e que fazem de Shroud of the Avatar um mero jogo decente de 2002. E nem precisamos de ir para excelentes experiências single player para encontrar formas mais satisfatórias de gastar o nosso dinheiro.
Falando em Guild Wars, é curioso que para as limitações técnicas da década passada (para um jogo que não tinha subscrições) muito do conteúdo tenha sido resolvido com instâncias após tantas críticas do público. Ver um MMORPG em 2018 a ser lançado com um sistema de mundo semi-aberto com instâncias é mostrar o quão desfasado da realidade os seus criadores estão.
Guild Wars 2 e Black Desert são apenas dois de muitos exemplos das maravilhas que os MMORPGs têm feito em termos de combate para se tornarem o mais dinâmicos possível num género que já teve melhores dias. O combate de Shroud of the Avatar, por sua vez, lembra-nos o quão fracos são as verdadeiras resmas de RPGs medíocres feitos em Unity que vão enchendo o Steam nos últimos anos.
Shroud of the Avatar: Forsaken Virtues queria apelar à memória dos jogadores old school de RPGs e de MMORPGs, tentando criar uma experiência que se mantivesse fresca nos dias de hoje. Mas falhou redondamente. Este jogo teria de ser muito melhor tecnicamente para conseguir rivalizar com os fortíssimos concorrentes que tem no mercado, em que muitos deles vencem por defeito não apenas por serem muito melhores mas porque em cima disso ainda são gratuitos. Lord British tentou relembra-nos da influência que tem no mercado dos RPGs, mas parece ter ficado excessivamente preso ao passado. E o caso de sucesso de Kickstarter que viveu e que resultou num jogo tão medíocre quanto este augura que esta pode ter sido a Ultima (trocadilho intencional) aposta de confiança do público nas suas criações.