Recentemente teci elogios à capacidade de imersão que um jogo ancorado na vivência do dia a dia das personagens pode ter. Agora tenho nas mãos Harry Potter: Hogwarts Mystery para iOS e Android, um jogo onde um personagem frequenta a famosa escola de magia durante os seus 7 anos letivos, participando em aulas, fazendo amigos, ganhando pontos para a sua casa e descobrindo os mistérios do castelo. O cenário perfeito. Tendo em conta tudo isto, é um feito digno de nota que os criadores tenham conseguido desenvolver um jogo tão desinteressante como este resultado final.

Apesar de ser publicitado como um jogo de role-playing, Hogwarts Mystery tem mais em comum com o género das visual novels. Mas uma com uma mecânica de progressão tortuosa. A grande parte das interações no jogo limitam-se a pedir toques repetidos em objetos ou pessoas para realizar tarefas. Isto podia até ser uma boa mecânica se as ações seguissem uma ordem progressiva que resultasse em alguma interação lógica ou pedisse o envolvimento do jogador para solucionar problemas ao estilo de aventuras point and click. Infelizmente, tudo o que se pede é que estas ações semi-aleatórias encham uma barra de progresso quantitativa que despoleta o fim da atividade, aula ou exploração. Em missões determinadas, o alcançar de cada estrela na barra de progresso despoleta uma atividade simples, como traçar uma ação ou um feitiço com o dedo no ecrã, provar a atenção do estudante à aula clicando no momento certo para alinhar dois círculos, ou responder a uma pergunta. A repetição ad nauseam destes três “desafios” rapidamente desgasta o seu suposto efeito de diversificação.

Acenar quatro vezes com a cabeça. Assim se joga Hogwarts Mystery.

O motivo de escolha desta mecânica de simples acumulação de cliques torna-se óbvio face à sua contraparte, a “Energia” do jogador. Com um limite inicial de 25, que aumenta irrisoriamente após algumas lições de voo em vassoura, cada ponto de energia gasto numa única ação demora 4 minutos a recuperar. Com a exceção do período de engodo que é a introdução do jogo, este depósito mal chega para encher a primeira metade da barra de uma simples aula. A única forma de obter energia gratuita está em meia dúzia de pontos fixos espalhados por Hogwarts, que fornecem 1 ponto a cada 6 horas. Assim, para a maior parte do conteúdo, a oferta de Hogwarts Mystery são cerca de 30 segundos a tocar em objetos no ecrã, seguidos de cerca de uma hora e meia de espera antes da próxima rajada de cliques.

Está claro que não tem que ser assim. Existem neste mundo umas pedras preciosas cor-de-rosa, capazes de renovar a energia dos estudantes de Hogwarts. O processo de consumo destes estupefacientes mágicos é deixado à imaginação, mas estas pedras extraordinárias podem ser adquiridas com simples dinheiro muggle. Ou com o cartão de crédito do jogador, melhor dizendo.

Vou tentar propor este modelo para o Rubber Chicken.

“Ok”, diz o leitor mais paciente, “Ainda assim é melhor do que ler os rótulos dos produtos na casa de banho. Vou avançando a história um bocadinho a cada manhã.”

Pois, mas está enganado, não tivesse eu escrito esta fala apenas para a corrigir em seguida. As técnicas manhosas vão mais longe. Cada missão tem um tempo limite para encher a sua barra de progresso. Este tempo aumenta proporcionalmente à energia necessária para a completar (que vai também vai aumentando com a progressão do jogo). Sempre com margem suficiente para conseguir terminar sem ter de gastar dinheiro, mas assegurando-se que o jogador terá que voltar ao jogo repetidamente. Caso o tempo acabe, na maior parte dos casos, toda a energia gasta é perdida, e a missão terá que ser recomeçada.

Digo na maior parte dos casos, porque os criadores a certa altura devem ter pensado: “O jogo não está a ser lento que chegue”. Então, para desbloquear cada aula onde se aprende alguma coisa, há um número crescente de estrelas que tem que ser preenchido em “aulas preparatórias”. Estas, que estão sempre abertas, são exatamente o mesmo jogo de “enche a barra”, mas adicionam o número de estrelas alcançado, mesmo que o tempo acabe.

“Ufa…  através de 3 aulas preparatórias de 3 horas cada consegui as 9 estrelas necessárias para ir à aula de 8 horas onde aprendi o feitiço que convenientemente preciso para seguir a aventura. Vamos lá continuar a história…”

Que só desbloqueia daqui a 8 horas. Ou pagando 100 das joias mágicas.

Fuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu…

Mas que magia há em Hogwarts Mystery para além da transformação de energia e paciência em estrelas numa barra?

Existem dois mini-jogos que de quando em vez são utilizados na história. Um deles pede que o personagem converse com um amigo, selecionando de entre três respostas possíveis aquela que melhor surta o efeito desejado, como encorajar, convencer ou animar. O outro simula duelos mágicos através de um sistema de pedra, papel, tesoura com os tipos de movimento “agressivo”, “defensivo” e “furtivo”. O vencedor poderá efetuar uma ação do tipo escolhido. Alguns adversários repetem constantemente a mesma escolha, que supostamente reflete a sua personalidade, mas que os torna demasiado fáceis de vencer.

A história, passada nos 7 anos imediatamente anteriores à entrada de Harry Potter na escola e da sua busca pela Pedra Filosofal, coloca o personagem principal no centro de um mistério. Anos antes, durante os seus estudos em Hogwarts, o irmão mais velho deste protagonista foi expulso da escola, desaparecendo em seguida. Rumores dizem que isto resultou da sua procura pelos “Cursed Vaults”, câmaras secretas algures em Hogwarts. Logicamente o nosso personagem terá que seguir nas suas pisadas, para o tentar encontrar.

Este percurso próprio, separado da história batida dos livros, é aliciante, e a interação com personagens novas ou outras já conhecidas que lá estudavam nessa época como Bill Weasley ou Nymphadora Tonks é terreno por explorar que deixa qualquer fã curioso. Infelizmente, até ao momento, a vertente de role-playing limita-se a permitir a distribuição de pontos nas categorias Coragem, Empatia e Conhecimento, cujo nível ocasionalmente permite escolher opções alternativas de diálogo. Também numa ocasião única pude escolher qual de dois companheiros me ajudaria numa missão. Mas estas escolhas não têm reais consequências para além de mais ou menos pontos neste ou naquele medidor.

Esta escolha precisou de nível 11 de Coragem no jogo e precisei de reunir outra dose de coragem minha.

A experiência de Hogwarts em si mesma é bastante desapontante, e isto começa logo no inicio, no grande momento onde o chapéu selecionador escolhe a nossa casa. Não, não há perguntas que denotem a personalidade, não há ambições nem dúvidas. Como não se está para chatear, o selecionador pergunta qual é a nossa casa de preferência. E está escolhida. É certo que é a forma de ter a certeza que o jogador fica na casa que quer, mas depois de tantos testes online ao longo dos anos a simular as escolhas do chapéu, é uma conclusão dececionante. Ainda mais depois da leve insinuação que uma questão feita pelo Sr. Ollivander influenciou a escolha da varinha.

Toda a majestade do castelo mágico está resumida a seis pequenos corredores com portas para salas e áreas onde apenas nos é dado acesso a partir do momento que a história as precisar de visitar pela primeira vez. Um mar de cadeados fechados onde nem o feitiço Alohomora nos safa.

A customização da personagem é tão pobre quanto possível, sendo que as escolhas grátis são ridiculamente limitadas. Para além de itens à venda pelas belas pedras preciosas, há outros aos quais está associada ainda outra moeda que pode ser comprada com dinheiro real. “Felizmente”, as opções disponíveis são pouco variadas e quase todas terríveis. Não há melhor substituição que o manto escolar inicial, e as raras escolhas interessantes como o cachecol da casa respetiva podem ser adquiridos com as moedas ganhas na progressão do jogo.

Qual destes seis modelos diferentes hei-de escolher?

E não há Quidditch. Sim, eu sei que já devia ter dito mais cedo e dar a análise por encerrada, mas depois ninguém lia mais nada.

Ainda só estão disponíveis dois anos e pouco da aventura, e o plano é que o jogo ainda tenha muito para dar. Novas atualizações trarão novo conteúdo e talvez mudem algumas das mecânicas atuais. No entanto, apesar do Rubber Chicken não dar notas nas análises, posso dizer que de momento Hogwarts Mystery é um zero como jogo. Em vez de jogar, desbloqueiem e voltem a bloquear o telemóvel repetidamente, porque dependendo do método de segurança, pode ser mais desafiante e definitivamente menos frustrante. Se como eu, estão algo interessados na história, porque afinal de contas é mais Harry Potter, recomendo esperar por mudanças (mas sentados), ou ver tudo no Youtube quando/se acabar.