Vamos falar de Splatoon? E antes disso podemos falar de Jackson Pollock? Por esta não esperavam pois não? Depois de uma referência ao Camões ali no título?
Mas falemos de Pollock, uma das grandes figuras do expressionismo abstracto nova iorquino e não apenas pela adaptação cinematográfica com o Ed Harris a interpretá-lo. Em traços muito simples este tipo de pintura gestual dava primazia ao automatismo e ao acto de pintar como expressão emocional dos seus autores, o que resultava em quadros onde cada gesto ficava impresso na tela. Foi o desenvolvimento ainda mais longe de algumas ideias trabalhadas durante o automatismo com a definição da action painting, que levou a momentos experimentais como representado no filme de Pollock e dos baldes de tinta atirados para cima de telas.
Desculpem-me a resumida aula de História de Arte, mas desde que joguei Splatoon pela primeira vez senti que em muitos aspectos esse é o resultado dos seus cenários, em que as manchas de tinta não demonstram as emoções dos jogadores mas conseguem contar muito do que se passou.
Talvez seja o cansaço misturado com a felicidade de ter um recém-nascido em casa, ou o meu cérebro rapidamente fez esta corrente de ligação entre o action painting de Pollock e Splatoon quando peguei em Trailblazers, um divertido e original jogo de corrida cooperativo que certamente não existiria se a loucura salutar da Nintendo não tivesse querido dar uma volta ao mercado com o seu third person shooter à base de tinta e lulas.
Trailblazers é possivelmente o jogo de corridas mais criativo que jogámos recentemente, e consegue apelar aos nossos nervos nostálgicos de jogos como F-Zero e WipeOut. Aliás, como o primeiro, em Trailblazers temos um elenco constituído por humanos e alienígenas que se defrontam nas estradas como se fossem arenas onde são resolvidos os problemas inter-planetários. E na realidade… são.
Mas o que Trailblazers faz de realmente diferente é a forma como pegou em Splatoon, na ideia de cooperarmos em equipa para preenchermos o máximo de espaço possível com a nossa cor, com um jogo competitivo onde a articulação do nosso foco com o da nossa equipa traz o melhor que os squad based FPS têm. Aqui o objectivo é simples: alcançar os lugares cimeiros das corridas. Para isso temos de ir preenchendo a estrada com tinta da nossa cor, o que não só nos dá e à nossa equipa um boost de velocidade, como atrasa os veículos adversários. É claro que o inverso também ocorre, e tem de ser levado em conta na nossa estratégia em tempo real, mas há tantas camadas inovadoras neste jogo, quase todas de tinta é claro, que o demarcam de tantos outros.
O primeiro factor é que a tinta se esgota rápido (até o “tinteiro” voltar a encher) e temos de medir bem quando é que vamos trinchar o chão com as nossas cores. Cada membro da equipa tem de pensar no bem maior colectivo, e é frequente que sintamos que um de nós se tem de sacrificar pela equipa e dedicar-se apenas à “inglória” tarefa de passar grande parte do tempo a pintar o chão. Fazê-lo significa que rapidamente vamos começar a descer posições versus os outros pilotos que estão apenas focados na condução e em chegar o mais rapidamente possível ao final das quatro voltas de cada corrida.
A coordenação entre os membros da equipa é essencial para impedir que apenas um fique com a cruz de ter de pintar o asfalto para que os restantes tenham os tão desejados boosts de aceleração. Se os diversos membros de cada equipa se coordenarem de forma a aproveitar os seus cooldowns devidamente é possível criar combinações de grandes porções de estrada pintada com a mesma cor, dando um grande avanço à equipa inteira.
Se os jogos de corridas futuristas têm usualmente a velocidade e os nossos reflexos como um dos momentos de maior tensão, Trailbazers consegue adicionar-lhe outro aspecto: o estratégico, obrigando-nos a gerir as nossas acções a cada micro-segundo da equipa, tentando sempre aproveitar e maximizar o que os restantes membros estão a fazer.
Do pouco que conheço ciclismo ou desportos automobilísticos, parece-me que finalmente um videojogo de corrida conseguiu adaptar este espírito de sacrifício de equipa e as diversas “mecânicas” que existem na vida real nestas modalidades. Mas fá-lo com a criatividade de um jogo que conseguiu de forma tão inteligente pegar nas ideias de Splatoon e trazê-las para um género completamente distinto.
Se mecanicamente Trailblazers não é apenas inteligente e original, é o seu visual detalhado e colorido que nos deixa de boca aberta por nos lembrarmos que no meio de toda a genialidade de game design que aqui existe, há também uma excelente direcção de arte com uma execução exímia que facilmente envergonharia os resultados de alguns estúdios mais possantes financeiramente. Já para não falar do cross-play existente entre PC, PS4, Xbox One e Nintendo Switch, coisa que muitas produções AAA tentaram mas falharam redondamente.
Trailblazers é um dos melhores e mais originais jogos de corridas da actualidade e demonstra a herança criativa que a Nintendo passou a tantos estúdios indie como o Supergonk, aquele que criou este jogo, e que consegue ir tão longe recriando géneros que parecem ter pouca estrada para correr.