Ainda no outro dia dizia que há certos jogos e certas temáticas na ficção que eu tendo a evitar de há um ano e pouco para cá, curiosamente Smoke and Sacrifice tem na sua base um desses temas com os quais eu prefiro não me envolver enquanto ao mesmo tempo puxou bastante por mim. Sendo um RPG aberto, podia falhar facilmente ao deixar o jogador esquecer a sua parte principal na narrativa, mas mesmo quando nos podemos perder há coisas que nos fazem sempre voltar ao nosso caminho, sendo a principal o amor de mãe no jogo, de pai no meu caso real.

Há pessoas que são pais, e há pessoas que são doadores biológicos, por mais divertido que possa ser fazer uma criança, a parentalidade é algo que envolve mais do que ter uma criança aos berros lá por casa, dar-lhe de comer e metê-la em frente à TV ou de um tablet porque não queremos que nos chateiem estando já mais que esgotados das horas no emprego e no trânsito, rodeado de idiotas por todo o lado. Parentalidade é educar, é cuidar, é brincar e acima de tudo é a ligação inconsciente e inexplicavelmente imaterial e valiosa que temos com os nossos filhos por quem movemos o mundo e vamos aos confins do inferno. Por isso os minutos iniciais de Smoke and Sacrifice custam tanto para um pai, por isso também é que conseguimos manter sempre o norte na nossa bússola, nunca perdemos o nosso rumo.

Quando tomamos controlo de Sachi, a personagem principal desta aventura, enfrentamos imediatamente o dilema maior que alguém nunca deve enfrentar, um dilema que nós como jogadores não podemos evitar, pois já está tomada uma decisão. O mundo está coberto de escuridão e gelo e sabe-se lá o quê para lá do que podemos ver. Não sabemos porquê, apenas sabemos que a nossa aldeia é (provavelmente) o único local onde se sobrevive graças à Sun Tree que aquece a nossa região, permite que campos sejam cultivados e afasta a escuridão e as criaturas que lá habitam. Há um senão, ocasionalmente tem que ser sacrificado um bebé para manter a luz, desta vez é o nosso. Desde ir dos campos à casa buscar a criança, levá-la ao templo numa procissão solene e ver o seu desaparecimento provocam um peso no peito de qualquer pessoa, especialmente de alguém que poderia ter que enfrentar essa decisão.

Contudo nem tudo é o que parece, e alguns anos mais tarde descobrimos que os sacrifícios não são o que parecem e há uma hipótese de salvar o nosso filho, apesar de remota e perigosa. Isto pode parecer um spoiler mas na verdade é só a introdução do jogo, como um tutorial narrativo, a nossa aventura começa realmente depois de sabermos isto e ter entrado no submundo desconhecido cheio de ameaças e novidades, onde somos obrigados a aprender para sobreviver, com uma forte componente de crafting vamos explorando o mundo e a narrativa. O tom pesado do enredo e do mundo é mais carregado pelo grafismo desenhado à mão, que além de belo torna tudo mais pessoal. É claro que é criado e processado digitalmente, não espero que os criadores do jogo tenham feito todos os desenhos em papel, mas a aparência desenhada com inspiração fortemente oriental dá ao jogo uma carga mais humana, as expressões dos personagens são mais humanas que em jogos com gráficos bem mais realistas, é algo que me permitiu criar uma empatia maior com Sachi e os habitantes deste universo.

Há uma tentativa por parte da Solar Sail Games de equilibrar Smoke and Sacrifice entre uma jogabilidade simples para jogadores mais casuais que podem avançar e acabar a narrativa principal sem serem obrigados a aprofundarem demais o seu investimento no jogo mas dando aos jogadores que querem esse nível de imersão a oportunidade de o fazer. Podemos manter a aventura no mais básico construindo os objectos mais essenciais e indo apenas aos locais principais, mostrando o urso de peluche do nosso filho a todos os que encontramos, ou podemos explorar todos os cantos deste submundo a 100% aprendo todas as receitas e fórmulas de crafting. O mundo é totalmente imersivo e nós temos que saber onde encontrar o nosso equilíbrio também. Ao contrário de grande parte dos RPGs de acção estamos limitados pelo dia. Ou melhor, pelo nevoeiro que cai durante parte do dia e os elementos perigosos que nele habitam, há poucos locais onde estamos seguros, não é fácil vaguear de um lado para o outro quando o simples facto de anoitecer pode matar a nossa personagem lentamente. Encontrar maneiras de evitar essas limitações dão uma tensão adicional ao enredo porque tudo tem uma duração limitada, podemos andar com uma lamparina mas se acabar o combustível a meio de dois pontos de luz com a manhã longe de aparecer pode ser mais assustador que recompensador do risco.

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Smoke and Sacrifice é belo, visualmente e na sua jogabilidade, podia ser uma bela concha vazia mas é mais que uma ilusão, é mais que fumo e espelhos, há nele um sacrifício nítido de quem o fez para que tivesse a qualidade de que é dotado.