Já toda a gente foi àqueles buffets de saladas em que o manancial de ingredientes dispersos quase que clama pelas misturas mais impensáveis. Salmão fumado e rodelas de salsicha fresca? Siga para o prato. Um bocado de repolho, três pedaços de courgette e duas colheres de amêndoas? Já cá estão. E olha ali aqueles acepipes de aipo e uns croutons marinados em vinagrete. Será que empratam bem com este molho de mostarda e as tiras de chocolate que já ali estão no fundo a servir de fundações para a mais improvável salada de sempre? E porque não?
Depois de andarmos a depenicar de quase todas as cuvetes e colocarmos um pedaço de tudo no prato, a nossa refeição há muito que deixou de ser uma coisa racional para ser o equivalente gastronómico de um conto da Mary Shelley.
Saltemos do prato para os baldes de Lego. Se já em adulto a minha autonomia de escolha me permite fazer arremedos de saladas, em miúdo a minha criatividade permitia-me construir armas pouco práticas e ainda menos funcionais a partir de Lego, mais ou menos o que uma série de doidinhos das pistolas andam a fazer nos EUA ao imprimirem armas de fogo com impressoras 3D, mas com a diferença que o que eu fazia era brincadeira e as armas pareciam algo saído de um sci-fi multi-colorido.
Quando caí em MOTHERGUNSHIP senti que estava outra vez sentado no chão da sala onde cresci a fazer pistolas com canhões curvos e com tambores laterais, verticais, sobrepostos, normalmente com componentes assimétricos e tudo feito de Lego. É que no meio de uma torrente de roguelikes, alguns deles a aparecerem na primeira pessoa, MOTHERGUNSHIP consegue distanciar-se de tudo isso ao permitir que construamos as nossas armas a nosso bel-prazer a partir de componentes modulares. As armas podem ser usadas em ambas as mãos, mas são independentes entre si, até ao nível do disparo (cada um dos botões do rato dispara as armas correspondentes, esquerda e direita). É frequente que no início de algumas missões não tenhamos dinheiro suficiente para conseguir criar de base duas armas distintas e funcionais, obrigando-nos a passar as primeiras salas com uma arma inteira e que dispare, e outra que é apenas parte de uma arma mas que não tem qualquer acção.
Onde poderíamos encontrar um sci-fi FPS roguelike genérico com a acção a passar-se dentro de uma nave em que a AI se rebelou, temos afinal um dos mais memoráveis jogos do género. A customização das nossas armas é o grande selling point deste jogo e é, afinal, o ponto que nos permite encontrá-lo no meio de uma multidão de banalidade.
Cada arma é maravilhosamente irrealista dentro das possibilidades que temos. Se tivermos uma peça central do corpo da arma com “entradas” no topo, nada nos impede de adicionar canos na vertical ou nos lados, se a base permitir. Em extremo podemos criar armas que deitem fogo, lasers ou projécteis, em ângulos e direcções diferentes, basta para isso que tenhamos dinheiro para comprar esses componentes e que eles se encontrem aleatoriamente disponíveis nas lojas dentro de cada missão.
Os raids das dungeons feitas naves inimigas têm uma sequência relativamente fixa: percorremos uma série de salas geradas de forma procedimental, matamos todos os inimigos, apanhamos o muito suado dinheiro que eles possam deixar cair, sobrevivemos, e rezamos para que atrás da próxima porta esteja uma sala de compra e upgrades.
Há uma simplicidade mecânica neste loop que em nada mascara o extremo desafio que MOTHERGUNSHIP constitui. Nem a inexistência de munições – substituídas por um sistema de aquecimento das armas – vem suavizar a dificuldade habitual do género, e que vê aqui mais um exemplo.
Cada pequeno trecho de cada sala de missão é como um efusivo parque de trampolins tecnológicos, no qual andamos a saltar, a ser projectados por painéis de força apenas para limpar os diversos pisos da ameaça cibernética.
MOTHERGUNSHIP vale não só pelo seu desafio mas por levar ainda mais longe a ideia de roguelike, obrigando-nos em cada nível a escolher um leque de componentes pré-desbloqueados que podem surgir para compra numa das lojas aleatoriamente colocadas a meio dos níveis. Cada run e cada missão é completamente diferente das outras, mais que não seja pela verdadeira construção de Lego que é a composição das nossas armas. Co-criada pelos autores de Tower of Guns, este é mais um excelente exemplo do quanto é possível ainda ir longe com um FPS roguelike, com algo que olhando agora é tão simples quanto deixarem-nos ser criativos e irrealistas com as armas que construímos.