Há já uns tempos que não conseguia fazer aquilo que adoro fazer, que é sentar-me aqui e escrever sobre as experiências que tive com videojogos. A falta de tempo não é a única desculpa. Por vezes falta “cabeça”. Disponibilidade mental. Sentar-me e dizer para mim mesmo que consigo escrever algo sobre um jogo. The Awesome Adventures of Captain Spirit é um dos jogos que, de certa forma, retira disponibilidade mental para falar sobre ele. Não se apressem nos julgamentos, o jogo não é mau, muito pelo contrário. Mas traz consigo um bouquet de socos no estômago disfarçados de beleza pálida e impoluta.
Na senda do emocionalmente poderoso Life is Strange, de que já falei aqui, e da sua igualmente poderosa prequela Life is Strange: Before the Storm, que também analisei, chega-nos este The Awesome Adventures of Captain Spirit, com a promessa de ver a sua história cruzar caminhos com o antecipado Life is Strange 2.
Novamente, a banda sonora assume um papel de importância, com Death With Dignity, de Surfjan Stevens, a dar o mote para um jogo de carga emocional pesada num ambiente de aparente leveza. Isto traduz-se num ambiente idílico visto pelos olhos de uma criança de 8 anos, com sombras, sim, mas colocadas na periferia. E, sobretudo, com a ameaça pendente de algo negro que está para vir. A forma magistral como a Dontnod o faz entranha-se na nossa visão do jogo, suga-nos para dentro dele e força-nos a sua perspectiva. E Surfjan semeia, então, a nuvem negra de uma ameaça invisível.
Spirit of my silence I can hear you
But I’m afraid to be near you
And I don’t know where to begin
And I don’t know where to begin
Somewhere in the desert there’s a forest
And an acre before us
But I don’t know where to begin
But I don’t know where to begin
Again I’ve lost my strength completely, oh be near me
Tired old mare with the wind in your hair
Amethyst and flowers on the table, is it real or a fable?
Well I suppose a friend is a friend
And we all know how this will end
Chimney swift that finds me, be my keeper
Silhouette of the cedar
What is that song you sing for the dead?
What is that song you sing for the dead?
I see the signal searchlight strike me in the window of my room
Well I got nothing to prove
Well I got nothing to prove
I forgive you, mother, I can hear you
And I long to be near you
But every road leads to an end
Yes every road leads to an end
Your apparition passes through me in the willows
Five red hens – you’ll never see us again
You’ll never see us again
A letra encaixa aqui de forma quase premonitória. Sem querer entrar muito por spoilers, grande parte da história do jogo parece ter sido moldada através da letra da música – ou trata-se, mais uma vez, de um fenomenal casting musical por parte da Dontnod, a exemplo do que fez com Life is Strange.
Encarnamos um rapaz de 8 anos. Órfão de mãe, com um pai que ainda se encontra em luto, depressivo, refugiando-se no álcool e no jogo. Um pai que tenta ser um pai, mas que se vê, também ele, perdido e sem rumo, com todos os seus sonhos desfeitos. Um pai a tentar agarrar-se à tábua de salvação que é o seu filho, mas que, por vezes, também o recrimina, numa relação amor-ódio tensa, entre a tentativa de ser bom pai e a vontade de atirar tudo para as urtigas, meter a cabeça na almofada e berrar até à inconsciência.
Numa manhã de inverno, vemos na primeira pessoa, a rotina de uma criança solitária que se muniu de uma fabulosa imaginação para construir um universo alternativo que lhe sirva de escape à monotonia e relativo desinteresse de um pai refugiado em si mesmo. Os brinquedos, meros objectos para um adulto comum, revestem-se de histórias e afectividade para uma criança. As histórias são intrincadas e, por vezes, inconsequentes, mas os brinquedos são assim. Há camadas de universos e históricos para diversos brinquedos espalhados pelos cantos da casa e é nesse mundo que nos submergimos, enquanto o nosso pai afunda no sofá, refugiando-se nos limites do alcoolismo e da sanidade.
Chris tenta ser um bom menino. Ele tenta. Tenta ser crescido. Tenta ajudar o pai. Tenta ser responsável. Vê-se compelido a deixá-lo em paz no sofá. Mas luta por agradar. E toda a envolvência vai sendo trabalhada no sentido de criar uma ligação emocional do nosso eu jogador com o nosso eu que é Chris, o menino de 8 anos que controlamos.
Mecanicamente, os jogos deste género padecem de alguns problemas em termos de controlo e fluidez. E são jogos de exploração, de descoberta, de digestão lenta por oposição a uma gratificação imediata ou objectivos facilmente perceptíveis e atingíveis. Não é jogo para se jogar sem algum investimento de tempo e atenção, o que é também uma interessante manobra de forçar o investimento emocional do jogador – o seu maior ponto de venda.
Sendo ainda o primeiro episódio, o seu arco é relativamente longo e o seu clímax, onde se abre todo um novo mundo de perspectivas, é também o seu culminar. Há um conjunto de tarefas aparentemente inócuas que vamos desenvolvendo e que, em alguns casos poderiam ser apenas as tradicionais fetch quests, mas estão deliciosamente contextualizadas e integradas na acção e ambiente geral do jogo.
The Awesome Adventures of Captain Spirit é, ainda na juventude do seu episódio I, um jogo incontornável para amantes de filmes-em-forma-de-jogo. Por um lado, irrita-nos a separação deste jogo em episódios porque a partir de certa altura, dá-nos vontade de o jogar de uma violenta vez. Por outro, perante a ameaça de terminar o jogo disponível, por aqui também se foi protelando o avanço até à conclusão da história.
É cedo para dizer se é ou não um grande jogo, como sucede habitualmente com estes jogos por episódios. Mas… Gostei tanto, mas tanto disto! Arte irrepreensível, ambiente sonoro perfeitamente homogéneo, fervura lenta, a apurar o sabor para uma derradeira explosão que é, como disse, um soco no estômago. Falta surgirem o resto dos episódios – e ver em que medida a história deste Captain Spirit se mistura com Life is Strange 2 – mas fica o conselho para não perderem este jogo.