Blackwake é um simulador de batalhas navais competitivo e colaborativo. Em cada cenário os 54 jogadores são divididos em 2 facções. Três tripulações serão piratas e outras três pertencerão à Marinha Inglesa. Duas das tripulações terão 7 marinheiros e a restante terá 13, dependendo da equipagem do navio.

Relato na primeira pessoa

Tremendo eu que nem uma vara verde, de flibuste na mão, lá fui conscrito na Marinha. Desta feita o oficial de serviço é um britânico de gema, cujo jogo subiu-lhe claramente à cabeça. A sua foto no Steam é a de um verdadeiro oficial da marinha, e a sua voz paternal e autoritária não deixa dúvidas que devemos obedecer sem hesitação à sua voz se queremos sobreviver ao que aí vem. Ele instrui-nos a lançarmo-nos da doca para a água, de forma a nadar até a um dos navios atracados próximos e subir a bordo através de uma escada de corda estendida para o efeito. Inevitável que algum marujo durante o caos se equivoque e siga a tripulação errada, o que implica saltar borda fora após largarmos o porto e 99% das vezes na sua morte.

A embarcação é uma bela brigue do tipo fragata, armada com 18 peças de artilharia, 7 de cada lado + 2 dianteiros e 2 traseiros. Além do seu poder de fogo surpreendente é extremamente ágil e veloz para o seu tamanho, mas bem mais frágil e fácil de afundar que o seu rival, o Galeão.

Um ou dois tripulantes trazem um monócolo e procuram insistentemente pelo paradeiro de navios hasteando a Jolly Roger, que aparentemente fomos informados navegam inevitavelmente na nossa região. A maioria dos tripulantes, incluindo eu próprio, optamos por trazer chá.

Pode parecer que o chá teria pouco lugar durante uma refrega em alto mar, no entanto, sendo uma embarcação Inglesa que se preza, há que respeitar as tradições. Posso confessar-lhes que em muitos momentos, durante o caos da batalha, quando sinto a minha visão a desvanecer com toda a carnificina que acontece à minha volta, foi uma chávena de chá que me trouxe à realidade e me deu alento para continuar a lutar.

Ouvi dizer que os piratas, vivendo barbaramente à altura da sua reputação, têm um ritual semelhante a bordo, em que usam Rum ao invés de chá. Nesse rumor apenas me espanta como é que os navios piratas conseguem lutar tão ferozmente sob o efeito intoxicante do álcool. A julgar pelo comportamento de muitos marinheiros de nossa majestade quando de licença nos bares e tabernas que abundam nas vilas portuárias, metade dos marinheiros seriam incapazes de levar a cabo qualquer ordem da parte do Capitão enquanto a outra metade rapidamente se lançariam borda fora sob a excessiva antecipação do combate causada pelo torpor dessa demoníaca bebida.

Mas digresso. Continuando o relato da minha primeira experiência a bordo da “Vanguard”, nome da embarcação do lendário capitão Sir Edward Berry.

Rapidamente toda a tripulação estava empenhada no moroso e intrincado processo de carregar os canhões. À nossa beira caixas apresentavam uma panóplia de munições. Enquanto que carregar o canhão exigia colocar a pólvora, colocar a munição correspondente, empurrar a munição com a vareta, e empurrar o canhão para a sua posição de disparo.

Depressa o Capitão estava a dar ordens para os canhoneiros tomarem as suas posições a estibordo enquanto o navio manobra para termos vantagem sobre o inimigo. “Navio inimigo a Estibordo. 600 metros. FOGO! Sem pressas!”

Sendo este último aviso para que se aponte e dispare quando se estiver certo do disparo. Tendo em conta que o navio inimigo também manobra para obter posição favorável e os ventos e ondas fazem a nossa barca balançar como se fosse uma casca de noz, é fácil para um novato perder todos os tiros a que se propõe. O capitão também tem voz a dizer na matéria, por desacelerar e manter o navio alinhado com o alvo facilita o trabalho nos canhões.

No entanto a falta de pressa é ilusória, e os marinheiros sabem que se não forem suficientemente rápidos, o navio inimigo disparará primeiro, e com esses disparos trará morte e destruição. Que é exactamente o que acontece agora. Enquanto eu admirava o trabalho dos meus excelentes companheiros o navio inimigo dispara e passado alguns tensos e breves segundos algumas balas caem demasiado perto da minha posição de observação. O corpo de um dos canhoneiros a meu lado explode antes que ele tenha tido oportunidade de disparar um único tiro, fazendo chover sobre mim sangue e tripas observo boquiaberto a sua cabeça voando borda fora. A bateria encontra-se agora neutralizada mas não há tempo para arranjá-la pois o Comandante volta a vociferar as próximas ordens. “Bombas e buracos! Bombas e buracos!”.

Atarantado e sem tempo para parar e verificar se algum daquele sangue é meu, e se fui ferido durante a explosão, titubeio até à bomba mais próxima e começo a puxar água, enquanto observo a tripulação andando de um lado para o outro. Alguns continuam manejando os canhões tentando infligir mais danos no inimigo do que ele inflige a nós, enquanto outros correm de um lado para o outro tentando remendar as fendas recém geradas pelos disparos inimigos com estopa alcatroada e um martelo. À minha esquerda noto que  o buraco continua a deixar entrar água e eu fico dividido, devo continuar a bombear a água ou sair da bomba para tentar remendá-lo? As ondas açoitam o nosso navio que agora já tem a frente bastante baixa e as ondas varrem-nos dificultando as operações.

Entretanto a embarcação inimiga, vendo que a maioria dos tripulantes da nossa embarcação são conscritos verdes como eu, decide aproximar-se para a abordagem. A abordagem certamente será mais arriscada mas permitirá obter os espólios, que em tempos de guerra são munições e pólvora extra dos nosso depósitos de reserva.

Eu tento largar a bomba de água , mas assim que o faço recebo uma reprimenda e um olhar de reprovação do capitão: “Não larguem as bombas, mantenham-nas a funcionar. São as bombas de água que nos mantém a flutuar enquanto reparamos o navio.” Recalcitrante e de orelhas quentes, resigno-me ao meu papel de novato, bombeando, bombeando, bombeando.

O navio inimigo que se aproximava não parece querer abrandar. O nosso navio tenta manobrar de forma a evitá-lo mas é tarde demais. Com a água que deixamos entrar este torna-se impossível de manobrar e somos albarroados bem no centro. Com o impacto alguns dos meus companheiros são projectados, um grande rombo abre-se no coração da nossa embarcação e logo de seguida são disparados os canhões da nave adversária. Mas desta foita não trazem morte e destruição. Seria preferível que o trouxessem. São disparadas âncoras amarradas por cordas que impedem que os navios se separem e permitem o início da abordagem.

Algumas cabeças surgem por trás da proa do adversário. Disparos, mais alguns companheiros caem. Homens vestidos de negro, mais parecendo demónios, saltam do navio adversário e começam a trucidar os nossos homens a torto e direito. Estupefacto largo as bombas e tento sacar do meu flibuste. Aponto ao homem mais próximo, mas é uma arma de longo alcance e ele está perto demais, falho. A água cobre agora quase completamente todo o navio. Falho também nervosamente com a minha pistola, embora o pirata esteja mesmo à minha frente. Serão realmente demónios? A criatura maléfica do outro lado parece ter ouvido e responde-me, com uma voz fantasmagórica, grave e jocosa: “Yarrrr. Vais morrer hoje e o teu corpo servirá de alimento aos peixes.”

Tento sacar do meu sabre regimental enquanto o pirata se aproxima calmamente de mim, e num gesto treinado e hábil desfere a estocada mortal. Impotente sinto a vida esvair-se de mim enquanto afundo com o que restava do meu navio.

Paz.

De Marinheiro a Capitão

Durante as próximas semanas embrenho-me no jogo de forma a dominar o máximo que consigo. Aprendo a mexer eficazmente nas várias peças de artilharia. Aprendo a utilidade de cada munição. Decoro a planta de cada tipo de navio. Aprendo manobras arrojadas, como subir às velas. Treino os disparos com os diversos tipos de armas. Assimilo a custo as poses de batalha com armas brancas.

Um dia, à falta de melhor, atrevo-me a ser eu o Capitão. Que desgraça completa. Ninguém consegue acertar nos inimigos. Coloco a minha tripulação desnecessariamente em perigo. Sou rapidamente invectivado e destituído por amotinagem.

Descubro na internet vários manuais completos de capitania. Num deles o autor baseia-se em táticas reais de batalhas marítimas para ensinar como jogar Blackwake. A simples existência de tal manual deixa-me estupefacto.

Como é possível que um jogo, criado por 2 adolescentes em 2013 possa ter gerado tamanho empenho dos seus jogadores? Como é possível que um jogo indie desconhecido tenha criado tamanho impacto na minha vida?

É verdade que sempre fui obcecado por histórias de piratas. O meu livro preferido foi durante muitos anos a “Ilha do Tesouro” de Robert Louis Stevenson. Como adolescente li a coleção completa do Emílio Salgari. Mas as referências que os jovens desenvolvedores apontavam como sendo a inspiração do jogo não eram as mesmas que as minhas. Os filmes Piratas das Caraíbas não são o sítio ideal para aprender sobre pirataria.

Embora a história do Blackwake seja a de outros tantos jogos Kickstarter. Uma campanha bem sucedida, um jogo em eterno acesso antecipado e desenvolvedores com um sonho e vontade de o realizar a qualquer custo. O sucesso deste jogo para a minha pessoa não se pode reduzir a isso. Até porque a fórmula de um Battle Royale 27 contra 27 jogadores não é propriamente inovadora.

Design com o Universo

Uma vez ouvi Daniel Benmergui enunciar o conceito de Design com o Universo. O conceito como o entendo vai mais ou menos assim:

Um designer de jogo limita-se a escavar para encontrar pérolas. O papel de um bom designer é portanto triplo:

1 – Escavar.

2 – Saber reconhecer o valor das pedras que encontra.

3 – Saber quando parar de escavar.

Qualquer um pode gamificar um calhau: atribui pontos por cada par acção/reacção. Mete-lhe um GUI (visualização) e uma Leaderboard e já tens um jogo.

Mas os melhores jogos que se destacam são construídos ao redor de pérolas. Ao observar outros jogadores companheiros em Blackwake, consegui reconhecer neles o mesmo sentido de maravilhamento que eu sentia.

Evocar de memórias passadas

Blackwake é um evocar das memórias passadas. Uma homenagem ao tempo em que os nossos antepassados abandonaram a terra firme para oferecerem as suas vidas ao capricho dos mares. Talvez por isso atraia tanto Portugueses, Espanhóis e Ingleses. Alguns Holandeses podem ser vistos online também. Estará no nosso código genético gostar de Blackwake, ou será apenas o subconsciente que esteve atento às aulas de história a entrar em acção?

Em poucas semanas joguei quase 200 horas de Blackwake,. Durante esse tempo fiz a minha jornada até ao grau máximo (elite) que se pode ter. Em Blackwake desbloquear a medalha elite não é apenas sinónimo de muitas horas jogadas. Com esse desbloquear vem inevitavelmente muita skill associada. Blackwake atribui nicles-batatóides de vantagens a jogadores elite (desbloqueiam-se apenas alguns chapéus e fardas de efeito cosmético). No entanto, estes jogadores valem literalmente por dois ou três jogadores normais, ao ponto de haver propostas que no balanceamento das equipas essa regra seja implementada literalmente.

O que é diferente

A atmosfera do jogo é bastante mais sanguinária que o jogo de piratas juvenil habitual. O jogo tem pormenores de implementação subtis, como o sistema de falas das personagens que é despoletado por determinados eventos. Os mapas com elementos externos surpreendentes (tufões, vulcões e icebergs). Existe uma camada de escolha táctica, na escolha da embarcação e da munição, como qualquer jogo Multiplayer que se preze.

Pessoalmente, adorava que o jogo tivesse mais complexidade e realismo. Nomeadamente no que se refere à navegação e aos ventos, que na vida real condicionavam muito as batalhas e movimentações. Apesar disso, na sua presente forma Blackwake é divertido para o jogador iniciante, mas complexo o suficiente para deixar interessado o jogador veterano. E que mais se pode pedir?

Blackwake vende-se no Steam por 20€, mas consegue-se encontrar facilmente em desconto por metade ou menos. É um daqueles jogos que pode comprar para si e para um amigo. Isto é se não se sentir como me confessava um colega pai-jogador: “Eles têm idade suficiente para comprar o jogo para si mesmos”.

Blackwake é uma espécie de Fortnite, de jogabilidade assimétrica, com laivos de Roleplay marítimo.  Apelará especialmente a pessoas cujos antepassados tenham morado em barcos, à procura de melhor sorte, mas que se vêm agora aprisionadas à frente de um computador.