Tinha sete anos quando conheci a pessoa que seria o meu melhor amigo durante muitos anos. Desde miúdo que ia para rua brincar, quase contrariado. Não que não gostasse da malta da minha idade que brincava na rua, mas porque gostava muito de ficar em casa a brincar sozinho, a ver TV, a jogar videojogos ou a ler. Numa das muitas tardes de brincadeira na rua acabaria por vir um rapaz que era meu vizinho desde sempre e o qual eu nunca tinha visto. A ligação foi imediata: os dois com óculos, a morar no mesmo andar em prédios ao lado um do outro, fãs de banda-desenhada e de videojogos acabaríamos por criar uma amizade como não sabia ser possível. O que se construiu foi uma relação forte, em que passávamos as tardes em casa um do outro a jogar, ora na minha Family Game ora na Mega Drive dele, em que o primeiro a acordar e a tomar o pequeno-almoço tocava à porta do outro para irmos para a rua conversar, normalmente para debaixo da árvore mais alta que existia em frente às nossas casas. Ou, fãs que éramos de Calvin & Hobbes, íamos para um ramo de uma árvore mais baixa onde nos sentávamos depois de almoço, e imaginávamos ser a nossa versão do Clube Livra-te das Raparigas Peganhentas. Havia períodos especialmente duros das férias que nos custavam muito, que era quando ele ia passar umas semanas fora. Era na sua ausência que sentia o quanto a nossa amizade era importante, naquela vivência diária de amigos quase irmãos que partilhavam o crescimento juntos divididos pelas paredes conjuntas de dois prédios unidos.
Com menos de um ano de idade entre nós, a adolescência que chegou mais cedo para mim viria a causar algum afastamento. A disponibilidade que tínhamos em miúdos já era diferente, já mal havia tempo para ir para a rua conversar sobre o que se passava. E quando íamos as conversas já tinham deixado de ser sobre as preocupações suaves de gente pequena, e os jogos e as BDs iam lentamente dando lugar às tristezas com os primeiros desamores. A expressão anglófona grow apart descreve melhor o que se passou connosco do que o mero distanciamento. Crescemos em linhas opostas, depois de um caminho de gostos, interesses e risos em comum. E depois de seis anos de convívio quase diário, a imagem do meu melhor amigo acabou por ficar presa à passagem da infância sem nunca mais voltar.
Continuo a sentir que as grandes obras artísticas são aquelas que conseguem afectar-nos para além da nossa pele, para além do contacto primária da separação entre o que somos e o que experienciamos. Foi exactamente esse contacto profundo que tive com The Gardens Between, um jogo brilhante que explora as memórias de infância de duas amigas e que rapidamente me remeteu para o meu próprio crescimento.
The Gardens Between, recém-lançado para PC, Switch e PS4, é um jogo altamente emocional na sua forma de contar uma história profunda, de nos levar num passeio delicado pelas memórias de amizade da infância das duas personagens, sem utilizar uma única palavra. As duas movem-me por pequenas ilhas constituídas por elementos da sua infância: numa ilha têm de ultrapassar as ferramentas que usaram para construir a sua casa na árvore, noutra exploram as longas tardes a jogar Famicom no sofá. Tudo isto desenvolvido com uma direcção artística brilhante, das mais fortes e coesas que vi este ano, em que a construção geográfica e estrutural das ilhas é feita com base nesses mesmos elementos dispersos, aumentados, dispersos, como migalhas de um caminho invisível pelas nossas memórias.
A viagem pela memória, contada sem voz pelo game e level design do jogo é profundamente brilhante e em muito contribui o design sonoro e musical. O ambiente que nos encerra no percurso das personagens do início de cada ilha até ao final dela é de mergulho auditivo na profundidade do que se está a passar. Na entreajuda das duas personagens em conseguirem resolver todos os puzzles, alternando a estrutura das ilhas para prosseguirem o seu caminho.
Em The Gardens Between não controlamos as personagens mas sim o fluxo do tempo. É neste pormenor de vital importância que reside a excelência mecânica do jogo, e não só. Os comandos são simples: utilizamos o analógica esquerdo para a esquerda ou direita para andar para trás ou para a frente no tempo respectivamente. Temos um botão que permite às duas personagens a interacção com alguns elementos do cenário. Vai ser neste rebobinar e avançar do tempo e do percurso das personagens que iremos resolver os puzzles que são colocados no seu caminho e levá-las ao final de cada ilha, onde irão construindo constelações das suas memórias, desbloqueando imagens coesas da sua infância de onde são retirados os elementos presentes em cada nível.
O facto de não controlarmos as personagens mas sim o fluxo do tempo permite que a qualidade das animações delas sejam perfeitamente brilhantes e dinâmicas. Ora uma pára e espera para que a outra passe à sua frente, ou fique a olhar para algum elemento na ilha ou escale uma rocha. A monotonia de animação que poderia existir pela limitação de ter um ciclo de movimento único é substituído por um elemento dramático e cinematográfico pré-definido das personagens comportarem-se de forma diferente mediante a situação em que estão.
The Gardens Between é soberbo, inteligente e diversificado no tipo de puzzles que possui, de uma beleza extraordinária ao nível de cenários, direcção artística e música, e de uma grande profundidade emocional neste percurso de reconstrução das memórias das duas personagens. É certamente um dos meus jogos favoritos do ano e provavelmente o melhor jogo do qual não irão ouvir falar. Defini-lo como obrigatório é um eufemismo: esta viagem emocional e mnemónica é uma das grandes experiências videolúdicas de 2018.
Se as duas personagens estão a reviver os momentos felizes da sua amizade reconstruindo a sua memória nestas ilhas, da minha parte ainda me cruzo ocasionalmente com o meu amigo de infância com alegria quando vou visitar a minha família na casa onde cresci. Ele ainda vive na dele e nestes últimos anos falámos mais do que ao longo de vinte anos. Eu mudei de casa há oito anos, mas nós os dois já tínhamos mudado muito antes disso. Os dois miúdos cuja amizade era equivalente a uma fraternidade incomum existem apenas na memória.