Era obrigatório. Peca por tardio, porque o corropio do quotidiano nem sempre me permite contar-vos o que me passa pelas mãos. O stress e o lufa-lufa das últimas semanas, próprios de um pai com dois filhos em pleno arranque lectivo, com uma sinfonia de actividades extra-curriculares a tocar em plena dissonante desafinação, arriscam mandar-me para cuidados médicos. Resta-me esperar que não seja tratado da mesma forma como tratei alguns pacientes neste Two Point Hospital.
Estávamos em 1997. Bill Clinton iniciava o seu segundo mandato. Nascia Dolly, a primeira ovelha clonada. Katrina and the Waves venciam o festival Eurovisão da Canção (nada de músicas a imitar galináceos, porque o Rubber Chicken ainda não existia) e Theme Hospital era lançado pela Bullfrog. O simulador de gestão hospitalar explodiu na altura e criou-se um culto. Em 2007 sai um Hospital Tycoon, que seria o equivalente a um Hospital Zombie Battle-Royale nos dias que correm, sem grande impacto. Estamos em 2018. Surge Two Point Hospital, um digno sucessor a Theme Hospital.
É como um pastel de nata. À estaladiça crosta de massa folhada da nostalgia e revivalismo junta-se o fumegante creme de natas que é a inovação, o humor, a profundidade de jogo e o meticuloso trabalho de pormenor. A crítica poderia acabar já aqui, em boa nota. Sei que sairiam do lugar para ir comprar o jogo ou, em alternativa, irem enfardar pastéis de nata. Missão cumprida. Mas o jogo merece mais.
Na sua base, continua vincadamente fiel a Theme Hospital. Enormes salas despidas que tratamos de dividir em gabinetes diversos. Clínica geral, cardiologia, enfermaria, raios X, farmácia, etc… a lista é gigantesca e cada sala cumpre o seu propósito específico naquilo que é a estadia de um doente no hospital. O fluxograma cresce vertical e horizontalmente, à medida que os níveis vão passando. O paciente entra no hospital, aguarda a sua vez, é atendido por um médico de clínica geral, este prescreve análises noutro local do hospital. Feitas as ditas, o paciente volta lá e o médico decidirá se carece de mais informação para refinar o diagnóstico ou se o mesmo lhe basta para recomendar um tratamento. Recomendação feita, cabe ao enfermeiro ou médico responsável levá-lo a cabo de forma satisfatória. Parece simples. Parece. Não é. A cadeia de diagnóstico alastra-se como que condensando toda uma temporada de House MD, por vezes. Isto provoca atrasos, filas de espera intermináveis e toda a colecção Primavera-Verão de queixas por parte dos nossos utentes. Ai que tenho fome, ui que preciso de entretenimento, credo que tenho que ir ao WC, xiça que tenho frio, ou calor, ou dores, ou sei lá mais o quê. E, naturalmente, cabe-nos a nós suprir essas necessidades. E, de repente, a enorme sala despida começa a revelar-se exígua para tudo o que precisamos de lá encafuar. E para piorar as coisas há um VIP a chegar, que pode fazer-nos chegar uma considerável injecção de dinheiro e reputação e, claro, há vómito no chão de metade do hospital, corpos estendidos no chão, máquinas a arder e uma multidão a esbracejar de pânico enquanto foge do fantasma de um dos que pereceram nas nossas instalações.
Um dia normal, portanto.
Às mecânicas de Theme Hospital, Two Point Hospital (o que aparenta ser um subtil trocadilho com Hospital Two Point Zero) adiciona mais. Às mais variadas salas, juntam-se as inúmeras doenças, sempre carregadas de uma dose de humor, complementadas em jeito de punchline pela terapia de tratamento. Doenças como o síndrome de monocelha, com uma farfalhuda sobrancelha a substituir as duas aparadinhas que dita a norma. Ou a Pandemia, fazendo o trocadilho com a Pan (panela), apresentando os pacientes uma panela entalada na cabeça que tem que ser removida com recurso a um íman especial num laboratório de panelas. Mesma coisa para os “Light Headed patients”, com uma lâmpada no lugar da cabeça, com o tratamento a consistir em desatarraxar a lâmpada e atarraxar uma cabeça em seu lugar. Ou a “Jest Infection”, que tem como sintomas as Humorroids, Clownstipation e Joking Hazard e que precisa de uma clínica de palhaços para tratamento.
São mais de 50 doenças, cada uma com seus sintomas e tratamentos. Cada uma com sua referência que, por força das circunstâncias, se revela humorística. Que dizer de Grey Anatomy? Não, não é a série de televisão. É uma doença que faz com que os pacientes fiquem a preto e branco.
O tratamento? Uma clínica de Cromaterapia. O nome é rebuscado, mas é basicamente uma sala com uma cortina atrás da qual o paciente é pintado em RGB até atingir a cor pretendida. Os pormenores dedicados a cada animação, a cada colorização, a cada sintoma são verdadeiramente deliciosos, ricos, trabalhados com notório carinho e esmero.
Os pormenores não se ficam por aqui e a componente de gestão tem várias camadas de complexidade, aumentando a cada nível que passa. Há que gerir as carreiras dos nossos funcionários (tarefeiros, secretários, enfermeiros e médicos), ajustando-lhes os salários, atribuindo-lhes as funções para as quais estão mais qualificados, ministrando-lhes formação e, porque não? assegurando que eles também descansam da melhor forma para renderem a 100% quando estiverem ao serviço a tratar do próximo caso de Genes de Jeans (que faz as pessoas ficarem com pele azul, em jeito de jeans, caso estejam a perguntar). E é com estas coisas que o jogo passa de bom a fantástico. A profundidade e complexidade que o humor não deixa antever estão lá e estão surpreendentemente bem desenhadas e implementadas. O desafio passa a ser o que poderíamos apontar de menos positivo no jogo, mas não é tarefa fácil. Até a parte de termos um ranking online para os nossos amigos na Steam está implementada, dando-nos um desafio e motivação extra: competir com os nossos amigos pelo melhor hospital, ou o que mais tratamentos realiza…
A curva de progressão é enorme e, confesso, ainda não lhe vi o fim. A cada nível uma nova mecânica que faz gingar a balança de equilíbrio que pensávamos ter atingido na missão anterior. E isso é bom, muito bom. Theme, perdão, Two Point Hospital é imperdível. Mas, mais importante que isso, merece uma vénia por ir repescar uma velha glória e não se limitar a limpar-lhe o pó.