Podem reler novamente o título e olhar para a barra de URL. Estão mesmo no Rubber Chicken. Apesar deste artigo, pelo menos pelo título, parecer algo saído da Revista Maria, tenho de vos dizer que não é. É antes a história feliz de como os chocolates Toffee Crisp definiram de vez uma pessoa que tem passado os últimos (quase) trinta anos ligado aos videojogos, vendo essa paixão crescer de ano para ano. Como um inocente concurso da Nestlé acabou por dotar esse mesmo rapaz de uma das consolas mais históricas do mundo dos jogos.
Esse rapaz, como já devem ter percebido, sou eu.
O meu primeiro contacto com videojogos, como já tinha dito, aconteceu um pouco antes, em 1988, com um amigo emigrante do meu pai que tinha passado umas férias cá com a sua NES que vinha acompanhada do magnífico Super Mario Bros. Lembro-me de como os meus olhos ficaram vidrados naquela maravilha que acontecia naquele CRT a cores antigo, e de quando me passaram aquele comando para as mãos. Um comando demasiado anguloso e pouco-ergonómico para as pequenas mãos de uma criança, mas onde os botões e os controlos me pareceram tão naturais como se já tivesse passado toda a minha curtíssima vida a jogar.
Menos de 2 anos depois deste acontecimento a minha vida iria ficar definitivamente interligada aos videojogos. Estamos a falar do início dos anos 1990, quando os clones de consolas NES começam a chegar às lojas portuguesas vindas da Índia e da China, com os respectivos cartuchos de plástico a emularem o visual dos jogos de Famiclone. Só na adolescência, alguns anos depois, é que percebi que a minha consola não era legítima. Nem a minha, comprada na loja de electrónica de um tio, que foi o primeiro da família a ter uma consola destas em casa, nem a de toda a gente que conhecia: colegas de escola, vizinhos e família. Milhares de pessoas por Portugal fora (e quiçá no resto da Europa) que viviam no obscurantismo de não perceber que o acesso que tinham à mais revolucionária consola até então era afinal uma cópia mais ou menos bem-feita, mas ainda assim apenas uma cópia “dos indianos”. Consola essa (apelidada por toda a gente à minha volta como Family Game) que viria a ser a língua comum de muitos portugueses nascidos na década de 1980 e das suas famílias.
O segundo momento chegaria em Outubro desse ano, umas semanas depois do lançamento do Game boy na Europa. Na contra-capa da genial e saudosa revista Rua Sésamo surgia a publicidade a um mega-passatempo da Nestlé com uma grande diversidade de prémios, que iam de pranchas de surf a um Walkman. Lá pelo meio estava o Game Boy, que eu ainda nem sabia o que era.
O passatempo era simples: enviar sete provas de compra de chocolates Nestlé (neste caso eram as embalagens dos chocolates que faziam a prova) dentro de um envelope e aguardar o sorteio. A minha família acabaria por enviar sete envelopes com sete embalagens de Toffee Crisp cada. Se quiserem tirar ilações do significado místico destas consonâncias de setes ou pensarem no excelente álbum dos Iron Maiden, podem fazê-lo.
A nossa participação no passatempo não se deveu à publicidade em si, nem tampouco andámos a gastar uma pequena fortuna em chocolates apenas para responder ao passatempo. Se pensarem bem na viragem da década, devem lembrar-se que muitas das famílias portuguesas concorriam a este tipo de passatempos, que invariavelmente passavam por enviar cartas com algo lá dentro. Até as participações nos concursos televisivos eram feitos com cupões colados em postais dos correios, lembram-se?
No meu caso o acesso aos chocolates até passou pelo meu pai, que à época trabalhava num armazém alimentar e tinha comprado algumas caixas de Toffee Crisp (o chocolate favorito da família) a um preço mais simpático. Foi até ele que nos alertou que o passatempo estava a decorrer, e que nos incentivou a concorrer.
Semanas depois, viria uma carta da Nestlé, que ainda hoje e que anunciava que tinha ganho o sétimo prémio do passatempo (irónico não é?): um novíssimo Game Boy, que custava 23.000$, um valor altíssimo para muitos dos bolsos das famílias portuguesas em 1990. O que incluía a minha, onde o poder de compra nunca me permitiria ter uma consola deste valor. Um brinquedo, como muitos apelidariam até há pouco tempo e que custava perto de um salário mínimo português para a altura.
O meu pai lá iria até Linda-a-Velha com a carta para resgatar o prémio. Lembro-me de quando ele chegou e abri a caixa da consola, que com o Tetris que vinha incluído rapidamente se tornou a fonte de entretenimento lá de casa, curiosamente muito mais que até a Family Game que nunca teve adesão da minha família e era praticamente só utilizada por mim, pelos meus primos e pelas minhas tias. Mas o Game Boy não. Até o meu avô jogava ao Tetris. Temos fotos de férias onde é possível ver como jogávamos à vez, com a consola ligada a um transformador genérico que o meu avô tinha comprado, porque o dinheiro que se gastava em pilhas era avultado.
O Game Boy foi assim a minha primeira verdadeira propriedade da Nintendo, onde aquele selo dourado de qualidade na caixa viria a demarcar a minha vida para sempre. A união das duas consolas, o Game Boy e o meu Famiclone viriam a ser providenciais pela minha paixão por videojogos. Mais do que as idas aos cafés e arcadas para jogar jogos, ou mesmo os microcomputadores que os meus primos mais velhos tinham. Foram aqueles jogos em 8 bits que condicionaram o meu gosto pelos videojogos, a minha proximidade com a Nintendo e até se olhar bem, a minha militância pelo mercado indie que tanto vai beber a esta geração de videojogos.
A minha primeira consola Family Game já não existe, e teve uma morte prematura quando a emprestei a um vizinho ali por volta de 1992, mas a sua substituta ainda aqui anda a funcionar, assim como as cassetes (como chamávamos aos cartuchos), que estão guardadas numa caixa. O meu Game Boy ainda funciona em pleno, com 28 anos, recuperado de uma falta de visão e de voz que se abateu sobre ele há 8 anos, mas recuperado após uma cirurgia e um transplante feito pelo nosso Sérgio Serra. A fotografia que podem ver na revista Gamifica-te presente nas FNAC de todo o País é esse mesmo Game Boy, em todo o seu esplendor, com um cartucho que pertenceu à minha mulher quando era criança, e que é um dos melhores jogos da consola.
Os momentos que marcam a nossa vida são praticamente impossíveis de antever sem o afastamento temporal. Já tinha pensado nisso, tentando imaginar que situações/influências vão permanecer com o meu filho mais velho, do grande acesso a que tem a objectos culturais, especialmente videojogos e jogos de tabuleiro. Na altura eu também não saberia como é que o acesso às duas consolas mais revolucionárias do pós-crash (sendo que uma delas era apenas um clone, mas eu vivi-a como se fosse se fosse “a sério”) acabariam por moldar-me de forma tão profunda que só o consegui reconhecer quase trinta anos depois.
O Toffee Crisp foi, até ser descontinuado em Portugal, o meu chocolate favorito. Quando o vi regressar a alguns cafés lá me esgueirava para comprar um e saborear algo que me leva de volta à infância. Para mim Toffee Crisp sabe a felicidade, a videojogos, ao plim! de um Game Boy a funcionar. Cheira à felicidade de infância, às férias em família, ao Sol de Vila Nova de Milfontes, ao toque de um cartucho de Game Boy. O plástico laranja da embalagem, intocado pelo tempo é uma prova da desse momento perdido no tempo, quase aleatório, quando um passatempo banal reorganizou o meu código genético, num efeito-borboleta que despoleta quem sou hoje. Mas se pensármos bem, aquilo que somos não é pouco mais que o somatório de pequenos acasos aparentemente insignificantes? Como um chocolate há quase trinta anos que viria trinta depois a definir uma vida dedicada aos videojogos.