Terei de iniciar este artigo dizendo que não sou psicólogo, não sou psiquiatra, nem tão pouco possuo qualquer tipo de formação na área da investigação psicológica e/ou mental. Tudo o que daqui partir, passa por um “batido” de opinião misturada com questão e topping de interesse próprio.
Sendo o drama uma das minhas fads favoritas nos videojogos, seria de esperar que um dia me questiona-se com isto: porque razão é tão fácil chorar com o produto de ficção? E com esta questão dou início ao meu pequeno produto de opinião.
Em que ponto podemos relacionarmos com um homem todo musculado, que mata deuses e titãs? Que parte da nossa mente nos leva a sofrer em nome de um recluso, sobrevivente de um apocalipse zombie? Com a missão, acreditem ou não, de proteger uma pequena menina que perdeu os pais enquanto estes passavam férias. Seriam de facto capazes de salvar a galáxia? São capazes realmente de qualquer um desses feitos, ou tantos outros que abundam na ficção dos videojogos? Tocando nos afectos, se realmente amas um extraterrestre virtual criado por alguém chamado “John” que trabalha oito horas por dia, num escritório em Seattle, com uma qualquer programa de edição de imagem e programação em frente dos olhos. Lembrando que esta extraterrestre é criada com frases, discursos e reacções pré-programadas, que servem de resposta às tuas infinitas (4 ou 5) opções, também criadas por uma rapariga chamada “Samantha” que trabalha no cubículo junto ao John. Se realmente sentes amor por este programa, serás capaz de amar um ser humano/extraterrestre ou outra coisa, de carne e osso, com resultados completamente aleatórios para cada uma das tuas, agora sim, infinitas escolhas?
Amigos, contam-me histórias tristes, com que apenas me deixam sem palavras, com um olhar vazio, frio. Uma personagem secundária de um jogo que eu gosto, aproxima-se da morte num acto heróico, e escorrem-me lágrimas pelo rosto.
Um à parte. Em que se baseia a relutância em admitir que se chora por uma peça de ficção? Será parte de um sentimento de culpa por não ser tão fácil fazê-lo com questões reais? Aliás, um sentimento de culpa própria por algo não controlável, como as nossas próprias emoções.
Optei pelo caminho de tentar realizar algumas entrevistas a pessoas com vários graus de proximidade comigo, na esperança de obter resultados variados, retirando o factor confiança da equação. Cheguei muito rápido à conclusão de que é mais fácil falar da nossa vida pessoal com alguém que não conhecemos, ou conhecemos pouco. Outra conclusão simples destas pequenas entrevistas, que não colocarei todas para manter alguma coesão no artigo, foi de que é tão mais fácil para a maioria dos seres humanos falarem de si próprios na terceira pessoa quando confrontados com questões emocionais.
Novamente, questão. Porque é que é tão fácil para mim chorar com produtos de ficção em níveis de facilidade incomparáveis com situações da minha própria realidade? Porque é que apenas somos capazes de chorar quando sabemos ao pormenor a razão pela dor, ou em contrário, quando não fazemos ideia de onde vem a dor, não existe meio termo, ou sabemos tudo ou não sabemos nada, se apenas souber-mos, é irrelevante para nós.
Vindo de uma das entrevistas, não citando nomes e colocando a situação quase como uma questão ou desafio ao leitor. O teu melhor amigo suicidou-se, ficas em choque, quem te avisou foi a própria mãe que entre soluços e gritos, te conta pelo telefone. Não choras, tentas acalmar a senhora, não sabes bem o que dizer. Passas os próximos tempos até ao dia do funeral, sem reagir, nada te faz sentir nada, és um vazio. Chega o dia do funeral, sentas-te junto da família do teu melhor amigo, não choras. A mãe dele dá-te uma carta que ele escreveu para ti, uma despedida, sentes algo a fazer cocegas atrás dos teus olhos, não choras, decides abrir e ler no final do funeral como sinal de respeito a esta cerimónia fúnebre, com a qual nunca tinhas concordado e sempre achaste que nem sequer tinham muito significado. Até hoje. Acaba o funeral, todos saem, um pouco mais consolados por terem dado o seu último adeus, a família é a última a abandonar o local, e tu decides ficar ainda um pouco mais. Ao sair, a mãe dele toca-te no ombro, olha-te nos olhos, completamente destruída por dentro, e acena com a cabeça em aprovação, como que a dizer, toma o teu tempo. Possivelmente leu a carta, e sabe que o vais fazer agora. Sentas-te num banco junto à recente campa dele e abres a carta. Lês. Sentes a carta, sentes cada palavra, sentes a morte dele a atravessar o teu corpo, quase como se estivesses tu próprio a morrer enquanto lês, consegues visualizar a cara dele enquanto escrevia este texto como uma visão do passado. Choras, choras inconsolavelmente. Já sabes chorar, já consegues reagir, tens uma explicação. Uma obra de “ficção” escrita pelo teu melhor amigos, fornece as respostas que te faltam, não são as respostas que querias mas são as respostas que precisavas. Completou-se o livro, tens finalmente o fim de uma história que começou com os dois há 15 anos, e que ficaria para sempre sem final, não fosse esta prosa escrita por ele.
O acesso livre à ficção leva-nos a uma busca incessante por respostas, precisamos de fins para as nossas histórias, quando não os temos passamos o resto do nosso tempo num vazio, sem emoção, a tentar escolher o melhor fim para as nossas histórias. Temos milhares de milhões de fins possíveis para qualquer história, tudo isto quando esse fim não nos é dado.
Na sociedade moderna, só existem duas saídas para as histórias, ou temos um fim, ou ficamos eternamente a imaginar esse fim num limbo eterno. O meio não é suficiente.
Outra entrevista, um idoso já nos seus noventas, que vive numa aldeia isolada lá para o norte do país. Mais uma vez não revelarei a identidade. Este senhor nunca chorou por uma obra de ficção. Não aprendeu a ler, nunca jogou algo mais do que um pequeno jogo de “matrecos” e uma boa “suecada” e não compreende o porquê de se perder duas horas em frente a um ecrã para ver um filme, apesar de conhecer todas as grandes celebridades do seu tempo áureo. As respostas que ele procura são dadas em pequenas colheres de realidade. “A minha vida não está numa folha de papel ou num ecrã de televisão, a minha e a nossa vida é isto que estamos a fazer agora”, diz-me ele entre uma risada, dois golos num vinho maduro ácido como vinagre e um ataque de tosse. Eu sorrio mas não compreendo bem o que ele quer dizer. Temos obras magníficas criadas por seres humanos, como é que ele pode resumir tudo, apenas àquilo que vive? Nunca experimentou o mundo fictício e belíssimo de Mass Effect, a profundidade sentimental de Last of Us, nunca leu as brilhantes obras de Franz Kafka ou observou as obras primas de Stanley Kubrick.
Passados uns minutos que talvez tenham sido horas, e muitas cervejas depois, começa a contar-me uma história que aconteceu recentemente. Disse-me que chorou com um cliente há uns dias, mas já nem se lembra muito bem o porquê, apenas se lembra que era algo sobre a filha desse seu cliente. Apesar de não se lembrar bem da história e admitir que o próprio cliente não o queria dizer também, chorou com ele para partilhar a sua dor, não precisava de saber informações sobre o sucedido, não precisava de uma explicação, sentiu empatia, partilhou dor, para que alguém não a partilha-se sozinha. Não pediu ficção, não pediu mais detalhes, sentiu a dor de outro ser humano, sem ter principio, meio ou o tão procurado, fim. Ele foi capaz de sentir, por algo que não está directamente ligado a ele, sem ter de viver toda a história.
Falei com uma boa mão cheia de pessoas, para realizar este artigo, e todas partilham da opinião de que não sabem ou saberiam como reagir a uma situação emocionalmente chocante na sua vida ou à sua volta. No entanto, todas essas pessoas partilham também algo mais em comum. Quando questionadas sobre o último jogo que os fez chorar, e neste momento entenda-se jogo como produto de ficção, seja ele de facto um jogo ou um filme, livro, história. Todos eles sentiram algo ao contar-me exactamente ponto por ponto aquele momento que os fez chorar, aliás, uma entrevistada chorou enquanto me contava o fim do jogo da Telltale, The Walking Dead Season 1. Incrivelmente essa mesma pessoa, contou-me da morte da sua tia na semana anterior (tenho autorização para escrever isto) e não verteu uma lágrima, nem quebrou uma única palavra.
Será isto um processo de mecanização do ser humano? Estará o acesso à ficção a tornar-nos mais resistentes à nossa própria realidade?
Gostaria de facto de obter respostas de psicólogos, psiquiatras, psicanalistas e sociólogos que por aí andem, que me digam a vossa sincera opinião no assunto. Da minha parte, honestamente, não sei. Não compreendo este assunto, apenas o vejo acontecer.
Até ao próximo artigo, não deixem de ler, ver, ouvir, jogar e principalmente de viver.