(Este deverá ser o artigo menos relevante de sempre. Em cima do rescaldo do Lisboa Games Week, no meio do merecido hype a Red Dead Redemption 2, e com a notícia de que provavelmente Fortnite será votado “Jogo do ano” (o quê?!), escrevo aqui sobre algo que provavelmente não interessa a ninguém. Para além de toda a irrelevância, há tanto tempo que não escrevo que tenho a séria sensação que já não o sei fazer… aquela mesma sensação que sentimos quando não andamos de bicicleta desde crianças. Mas tenho a necessidade de falar de um momento, de vários momentos… e por isso, sem saber o que daqui vai sair mas deixando que as palavras se criem e se libertem dos meus dedos, aqui vai…. Muitos Spoilers e diálogos não traduzidos mais à frente – considerem-se avisados.)

2017 foi o ano em que me desapaixonei pela indústria de videojogos. O ano do desamor e do desinteresse, não porque a indústria estivesse má ou os produtos lançados fossem de baixa qualidade, mas sim porque 2017 combinou dois factores na minha vida que, unidos, tornaram-se uma espécie de bomba-relógio interna que carreguei silenciosamente.

2017 foi o ano que vivi uma depressão profunda e muito mascarada, oriunda da morte da minha Mãe em Maio de 2016. A depressão é uma maleita “engraçada” e engenhosa: disfarça-se, mascara-se, instala-se devagar e espalha-se por todo o nosso ser e em todos os aspectos da nossa vida, usando para cada ocasião, a sua máscara de muitas caras. Como sou alguém intrinsecamente lutadora, com um sentido de humor afiado sempre pronto na ponta da língua, alguém que trabalha 12 a 14 horas por dia e dorme 5 a 6 horas por noite, é difícil assumir os sinais da maleita que se tinha instalado. O sintoma apareceu na forma de, ao longo do tempo, tornar-me incapaz de me apaixonar por seja o que for do que me apaixona. Estou a falar de filmes, videojogos e livros. Desde aquele momento da perca em 2016, que lentamente, tudo deixou de ter cor e sabor. Muito vagarosamente, os livros foram-se abrindo cada vez menos, os filmes cada vez menos apreciados, as consolas mantendo-se desligadas mais e mais tempo. Foi algo muito subtil, como se a depressão não quisesse que eu desse por ela – como se quisesse causar o maior número de estragos possíveis antes de se fazer anunciar. Demorou praticamente 2 anos até que me apercebesse e assumisse, para mim e para os que me rodeiam, que a Depressão com D grande estava aqui e que eu precisava de começar a lutar e a contrariá-la. Ela ainda não se foi embora, mas agora já sei que cá está e já sei como a combater. Um dia falarei mais disto pois julgo que deveremos partilhar as nossas experiências de dor silenciosa (como a depressão) – que a nossa dor e como a combatemos sirva, pelo menos, para poder ajudar alguém.

Tal como expliquei acima, 2017 foi o ano em que se combinaram 2 factores que se tornaram como uma bomba-relógio. A primeira já falei e a segunda foi: a total ausência de conteúdo de videojogos interessante o suficiente para mim para que me levasse a investir tempo nele. Não sei bem como explicar este segundo factor, mas tenham alguma paciência comigo enquanto tento explicar o melhor possível. Saíram grandes e excelentes jogos em 2017: Zelda: Breath of the Wild, Resident Evil Biohazard, Horizon Zero Dawn, Nioh, Assassins Creed Origins, etc – mas das duas uma, ou não os joguei, ou os que joguei, como Nioh, Horizon ou Resi 7, não foram arrebatadores o suficiente para me acordarem ou manterem o fogo da Paixão aceso. Horizon é um jogo fabuloso e Aloy das melhores protagonistas femininas de sempre (talvez melhor que a Lara), mas é mais um RPG de Mundo Aberto, e com tanto para fazer e explorar, desfoquei-me da sua história principal ao fazer tantas e tantas side quests, e eventualmente….perdi o interesse e pus o jogo de lado. Eu sou uma mulher de Histórias, de personagens, de segredos e de lore. Sou uma Mulher que adora perder-se nas aventuras que explora, que adora vestir outra pele e entrar 100% numa personagem e história. É fácil para mim acabar um jogo a chorar, a rir, a sofrer, etc. mas o jogo tem que ser cativante o suficiente para me levar para lá. Só consigo continuar a investir as minhas preciosas horas num jogo se ele conseguir puxar-me para dentro o universo que cria. E Horizon tem sem dúvida todas as qualidades necessárias, mas ainda assim não conseguiu cativar-me o suficiente – senti-me perdida no seu vasto mundo. Com a falta de foco e a hibernação interna que vivia, esta foi mais uma experiência de jogo que não consegui disfrutar em pleno.

Não seria honesta se não partilhasse convosco um outro factor que ajudou a deteriorar a minha Paixão por videojogos nos últimos 2 anos.

Desde que a FromSoftware me deu Bloodborne em 2015, que nenhum outro jogo teve magia ou entusiasmo para mim e acabei sempre mas sempre a voltar para Bloodborne. Basicamente, desde 2015, apenas um jogo me tinha mantido “viva” para os videojogos: Bloodborne manteve a uma pequena faísca da Paixão a brilhar, mesmo que tenha estragado toda a experiência para os restantes videojogos que entretanto chegaram. Bloodborne foi a experiência completa e perfeita que eu não sabia que precisava até a ter jogado – mas esse será um tema para outro artigo.

Mas em Abril deste ano, finalmente, Tudo mudou!

God of War chegou e para mim, é bem mais que o inevitável jogo do Ano! Vamos já tirar o óbvio do caminho: não é de forma alguma um jogo perfeito! O conceito de design de alguns inimigos foi descurado e é algo repetitivo, as batalhas de Boss não são tão difíceis quanto deveriam ser, e a mudança de personalidade de Atreus, a uma dada altura da história, pareceu forçada e vinda de lado nenhum (apesar de explicada lá à frente). Pequenos detalhes mas grandes o suficiente para fazerem de God of War um jogo com falhas, mas tão perto da Perfeição quanto Bloodborne está – quanto um produto AAA pode almejar estar.

Ao mesmo tempo, God of War [2018] é o jogo que prova que histórias imersivas e lineares ainda têm lugar na indústria. É o jogo que prova que excelentes gráficos e história não impedem uma extraodinária jogabilidade e experiência. É o jogo que prova que podemos inovar, reinventar um produto, modernizá-lo e ainda assim mantê-lo fiel às suas origens e respeitar o seu passado.

E é o momento em God of War que cimenta esta ponte entre a inovação do Presente com as origens do Passado, que senti que a faísca deixou de ser uma chamazinha tímida e voltou a crescer para novamente incendiar a acender tudo, (no que diz respeito a Videojogos), o que os acontecimentos dos 2 anos anteriores tinham apagado.Momentos de puro génio são difíceis de descrever, até porque são tão pessoais e subjectivos quanto quem os descreve e qualquer tentativa de o fazer parece infrutífera e arrogante. Ainda assim, vou tentar.

Momentos de puro génio, seja em livros, filmes ou videojogos, são aqueles momentos em que algo que visualizamos está criado com tanto Amor, Dedicação e Mestria, que nos transcende enquanto o observamos. Momentos que podem ser meros fragmentos de segundos ou segmentos de minutos que nos parecem horas. É o momento em que entendemos que o criador de determinada obra, dedicou cada parte de si mesmo na obra que criou e por isso mesmo, nós – os jogadores/espectadores/leitores, no outro lado do espectro, sentimos cada gota da sua criação.

God of War está pleno destes pequenos momentos, com cada um deles a homenagear o jogador, todos os jogos anteriores, toda a saga de Kratos e ao mesmo tempo, toda a história que ainda se quer contar. Mas como referi, é de um único momento que quero aqui falar: O momento em que Kratos recupera as suas Blades of Chaos (ou, para ser historicamente mais correcta: as suas Blades of Athena).

Quando peguei em God of War [2018] pela primeira vez, como fã assumida da saga do estúdio Santa Monica, procurei apenas uma coisa: um jogo que mantivesse a qualidade e divertimento na sua implacável jogabilidade tão característica de todos os títulos anteriores. Secretamente, muito dentro de mim, desejei um jogo que redimisse Kratos enquanto personagem. Que mostrasse ao Mundo aquilo que tantas vezes julguei que só eu via: que Kratos era muito mais que um personagem monótono de uma só cor e camada. Sempre o vi como muito mais que isso e agora secretamente esperava que o Mundo o visse assim também. E este momento, mostrou-o como eu sempre o vi.

Vamos focar-nos e falar deste momento. Vamos dar um contexto.

Durante 6 jogos principais, as Blades of Chaos e Blades of Athena, foram o centro nevrálgico de Kratos e do jogador que o manipula. Funcionando como, literalmente, uma extensão dos seus braços, as Blades foram fulcrais para a jogabilidade brusca e avassaladora tão característica de todos os God of War. Na sua máxima força, as Blades eram absolutamente devastadoras e fizeram o jogador sentir-se um verdadeiro Deus em cada momento. Ainda que os diversos jogos nos dessem outras armas para desfrutarmos, nenhuma se conseguia aproximar do poderio das míticas Blades, uma das mais bem conseguidas e bem desenhadas armas de todos os videojogos que conheço. Mas quando iniciámos God of War [2018], Kratos já não tem as suas implacáveis Blades. Aliás, o primeiro momento de todo o jogo, o momento em que vemos Kratos a cortar uma árvore com aquela que será a nossa arma no jogo, o fabuloso Leviathan Axe, vemos Kratos a parar e a olhar para as cicatrizes dos seus braços – as cicatrizes deixadas pelas correntes das Blades que Kratos carregou tantos anos da sua vida. As correntes que fizeram dele um monstro e um escravo da vontade dos Deuses. Kratos olha para os seus braços, e através dele, o jogador vive o momento agridoce da mudança: o passado abandonado e a entrada no presente desconhecido. É um momento marcante e definitivo para o jogador: a certeza que aquele que vamos jogar é God of War, mas as Blades ficaram para trás…

Ao longo do jogo vamos descobrindo este novo Kratos e explorando a sua nova arma. A pouco e pouco, o Leviathan Axe transforma-se, por mérito próprio, na nova extensão do nosso braço. Na mudança que sempre quisemos mas nunca pedimos. Tal como Atreus se vai transformando numa absoluta arma letal que luta e cresce ao nosso lado numa maravilhosa simbiose que só um Pai e Filho criam, também a nossa “relação” com o Leviathan Axe vai crescendo e se amadurecendo até este se transformar na definitiva arma de Kratos. Até que, a meio da nossa jornada, Chris Balroq e todos os developers de Santa Monica, puxam o tapete de debaixo dos nossos pés.

Numa luta com Modi, um dos filhos de Thor, enquanto este provoca Kratos e Atreus através de insultos a Faye (a mãe de Atreus), Atreus entra em modo Spartan Rage, tal como o seu pai. No entanto, este pico de energia é definitivamente demasiado para que o corpo frágil de Atreus o aguente e este desmaia – cai inerte como se a sua energia tivesse abandonado por completo o seu corpo. Vendo o seu filho à beira da morte, Kratos afasta Modi e, em vez de procurar imediatamente a morte de quem os atacou, como tantas vezes aconteceu na sua história anterior, Kratos foca-se unicamente em Atreus e em devolvê-lo à vida. Em desespero, leva o seu filho para junto de Freya, a Deusa que vive isolada na floresta, e apesar da desconfiança que Kratos carrega com todos os deuses deste mundo e do outro, mais uma vez põe uma característica sua completamente de lado para poder ajudar a única coisa que agora lhe importa: o seu filho. Freya diz-lhe que, a doença que Atreus carrega, só pode curar-se com a magia que o coração do Guardião de Helheim (o Inferno na mitologia nórdica) contém. Mas Helheim não é um Inferno como os outros: é feito de Frio e de Gelo. É um lugar de devastação e desolação. Um lugar onde o Leviathan Axe, a Maravilhosa arma de Kratos, não fará qualquer dano. Gelo não derrete nem destrói Gelo. Kratos precisa de uma arma de Fogo.

E é quando Freya diz a Kratos que o seu Leviathan não servirá de nada, que Kratos terá que encontrar outra arma, quando vemos Kratos levantar-se e dizer que terá que regressar à sua cabana, desenterrar um Passado que jurou esconder para sempre, que nos damos conta, enquanto jogadores veteranos, que Kratos está a falar das suas implacáveis Blades!

Não vos vou esconder que, no meio de uma cena tão trágica e triste como esta, senti o ânimo e excitação de uma criança, por saber o que aí vinha. A ansiedade da antecipação de um momento que, honestamente, naquela altura do jogo, nem pensei que fosse possível, deixou-me a querer as Blades mais que nunca. Mas o Santa Monica Studio quis que o jogador soubesse o preço de ter as Blades de volta. Quis que o jogador entendesse o preço que Kratos teria que pagar. E construiu um momento sublime em que nos mostrou tudo isso…

Quando Kratos abandona a cabana de Freya para regressar à sua casa e recuperar as Blades, o mundo encontra-se obscuro em dor e escuridão por sentir que um Deus (Atreus), está à beira da morte. Esta dor e escuridão é traduzida através de um cenário de tempestade que envolve Kratos enquanto este pega na canoa de Freya e espera que esta os guie pelo rio até à sua casa. Pelo caminho, os céus relampejam em revolta, os animais correm e escondem-se, vemos Kratos sentado a observar, e, com o silêncio introspectivo de quem sabe que enfrentará o inevitável, viajamos em silêncio com Kratos.

Vagarosamente, vemos Kratos baixar o rosto. Subtilmente, a câmara desvia-se e contorna Kratos acima dos ombros. Nesse movimento de câmara ouvimos Kratos sussurrar um nome… Athena. Eis que a vemos. Ali está ela… o seu espectro sentado no barco contemplando Kratos num sorriso de observação e ironia. Kratos sussura: “Get out of my Head”… e o seu espectro dissipa-se tão rapidamente quanto apareceu, fazendo o jogador duvidar se alguma vez lá terá estado.

O barco atraca no seu destino. Kratos dirije-se à cabana que é agora a sua casa. De debaixo da porta do alçapão, do mesmo alçapão que no início do jogo Atreus foi impedido de entrar, Kratos retira as Blades. Tapadas por peles, Kratos contempla o que tem em mãos. Enquanto as destapa, vemos as Blades a chamarem por vida, rasgos de chama a chamarem pelos braços do seu mestre, e uma vez mais, a câmara, subtilmente contorna o corpo de Kratos, focando-se atrás dele, na porta de sua casa, onde aí a vemos.

Athena! Altiva e majestosa como sempre. Athena fala com Kratos com uma voz cristalina e insensível. Uma voz que transmite em cada sílaba, a verdade inevitável de cada palavra. Com o seu trinado ecoando pela cabana, Athena diz:

There is no way you can hide, Spartan. Put as much distance between you and the Truth as you want. It changes nothing. Pretend to be everything you are Not: Teacher, Husband, Father…but there is one unavoidable truth you will never escape. You cannot change. You will always be… a Monster!”

Kratos não grita. Não luta nem reage. Simplesmente responde:

I know – But I am your monster No longer!”

Kratos atravessa o espectro de Athena dissipando-a mais uma vez. A música cresce de tom e vemos umas dezenas de inimigos à sua porta. Pegamos nas Blades e sabemos que aquele é o momento de redescobrirmos o que esta fantástica arma é capaz de fazer.

E desta forma, em meros segundos, um diálogo rompe com tudo o que esperávamos de God of War. Um diálogo que põe a descoberto todas as camadas de emoção e profundidade que o Santa Monica Studio foi capaz de criar numa personagem que todos diziam ser monocromática e simplista. Ao mesmo tempo, Kratos enfrenta e liberta-se do seu passado. Reconhece o que fez e quem foi, mas quebra as correntes que o escravizaram tanto tempo. Existem erros do Passado que jamais poderão ser apagados ou ignorados, mas a catarse existe quando esses erros são olhados de frente, analisados e autopsiados. A catarse torna-se em Redenção quando essa autópsia é guardada nas gavetas da nossa mente e nós, enquanto actores e autores desse Erro, liberta-mo-nos das correntes da culpa e comprometemo-nos a não repeti-lo.

E foi o que este momento do retorno das Blades of Athena (ou Chaos) criou em God of War [2018] – a Redenção de Kratos. O momento em que este retorna ao instrumento da sua escravidão à vontade dos Deuses. O momento em que Kratos pára de fugir e de esconder do que fez tantos anos antes. O momento em que admite o monstro que é e que sempre foi. Mas o momento em que recusa continuar a sê-lo – que recusa pertencer a algo ou a alguém. O momento onde tudo o que vale a pena lutar é, pela primeira vez nesta saga que acompanho desde 2005, algo que não ele próprio – é o seu filho. Athena sabe onde atingir, e Kratos reage, com a dor da inevitabilidade, mas ao mesmo tempo com a força da reacção de quem luta por algo maior que si mesmo – neste caso, o amor de Kratos ao seu filho.

Na primeira vez que joguei God of War [2018], parei o jogo imediatamente a seguir a este momento. Não quis continuar. Estava demasiado assoberbada com emoções. Também eu, juntamente com Kratos, tinha aceite a monstruosidade dos últimos 2 anos. Tal como ele, também eu tinha decidido lutar por algo acima de mim – o amor daqueles que me rodeiam, principalmente daquele que partilha todos estes momentos comigo.

Demorei a escrever sobre este momento. Não sabia se o sabia fazer ou se o descreveria com a beleza que este momento merece. Mas tentei. Devia esta tentativa aos criadores do Santa Monica Studio e, principalmente a Kratos.

God of War [2018] trouxe-nos o jogo que quebrou com a tradição de um Hack&Slash, que trouxe o universo RPG a um jogo tradicionalmente de plataformas, trouxe-nos um Kratos mais conversador que nunca, um Kratos que sorri pela primeira vez num outro momento de génio e ternura dos criadores do jogo, mas acima de tudo trouxe-nos algo verdadeiramente inesperado e fabuloso:

O abraço de respeito a uma saga e a redenção de uma personagem que todos pensaram como sendo irredimível. E por isso, sussurro internamente um “Obrigada Santa Monica” sempre que olho para este 2018!