Artifact sai esta semana e promete ser mais uma pedrada no charco dos Trading Card Games.
Sou fã do género. Comecei com Magic: The Gathering há muito, muito tempo e, desde então, continuo um apaixonado pelo género, com espasmos de maratonas de jogatanas intervalados por longos tempos de abstenção. Não sou um hardcore do género, não. Quando comecei com Magic, era um estudante e as posses não me permitiam investir constantemente em baralhos competitivos, pelo que a alta roda das competições era, para mim, inatingível. Mas foi com o avô dos TCG que mais tempo passei, investigando, jogando, dobrando as regras em longos serões nos salões da Universidade, convivendo, rindo, competindo.
Dos normais 1v1 rapidamente me fartava, devido à estanquidade dos decks envolvidos. Gosto de situações novas, imprevistas. Gosto de ser forçado a adaptar-me e de ter novos desafios. Fugia, assim, das cores mais unidireccionais e optava, sobretudo, pela versatilidade de um azul-branco que me permitisse dominar o jogo e jogá-lo pelo prazer de o jogar, ao invés de atacar logo a jugular como faria com um deck vermelho ou de povoar a mesa como se fosse um animal saído da arca de Noé, como faria com um baralho verde. É certo que MTG evoluiu muito desde então, e aquilo que nasceu mais simples e linear foi adquirindo novos contornos e complexidades, mas é muito assim que recordo MTG com carinho. Entretanto, 2v2, com amigos, rodando os grupos amiúde. E mais. Chegámos a ter longas mesas com mais de 10 jogadores, a jogar todos juntos, improvisando regras a cumprir que todos seguiam escrupulosamente. E aqui entravam as alianças, as políticas, as negociações, num cruzamento promíscuo com Risco ou Monopoly, em que os acordos temporários tinham mais peso do que as unidades efectivamente em jogo. Eram tardes e serões magníficos e cultivaram em mim um amor muito particular por este jogo. Cheguei a competir, em torneios de pre-releases e sealed decks, mas foi sobretudo em drafts que mais me diverti. De novo, o apelo ao MacGyver que há em mim. Aproveitar as cartas possíveis, traçar uma estratégia e sinergia entre elas, dar-lhe um splash de imprevisibilidade e versatilidade, jogar, usufruir. Foi aí também que obtive os melhores rendimentos, com algumas vitórias em pequenos eventos.
Magic era rei e senhor. Havia um ou outro jogo digital, mas incrivelmente limitados na oferta de cartas. Mas Apprentice, esse, era uma referência. Um programa/jogo que continha a totalidade das cartas alguma vez publicadas. Longas horas passei a congeminar decks, a testá-los com amigos. Teorias em cima de teorias, cartadas em cima de cartadas.
Anos mais tarde, voltei em força com MTG Duels of the Planeswalkers. A chegada do jogo à Steam democratizou o seu acesso e se, olhando para trás, a ideia de lançar edições anuais limitadas em vez de aumentar o conteúdo de um jogo funcionou contra ele, certo é que o jogo primava pelo equilíbrio. As cartas disponíveis permitiam combates equilibrados, dentro de uma mini-meta bastante definida mas que, ainda assim, permitia as suas variações. Continuava a permitir-me inovar, adaptar e desfrutar do jogo pelo jogo. Mas a falta de actualizações e a necessidade de comprar o jogo seguinte foram delapidando o pequeno grupo com que costumava jogar. Nem todos compravam o próximo, nem todos o compravam ao mesmo tempo e o grupo com quem jogava foi sangrando, mês após mês, ano após ano. Tal como o jogo.
Surge então Hearthstone. Ia ser a next big thing. Da Blizzard. Do universo Warcraft, de onde nasceu também o Dota que eu continuo a adorar. Tinha tudo para me agarrar, tinha tudo para ser o meu jogo de eleição. Não foi. A desilusão foi curta e grossa. A simplificação exagerada, a abordagem quase infantilizada ao jogo e suas personagens, o absurdo desequilíbrio de algumas cartas e o impacto da aleatoriedade, minimizando a adaptação e os mind games fizeram-me afastar-me do jogo. E quando, um dia ao assistir à stream de um amigo, o vejo jogar e comentar, prevendo 2 ou 3 jogadas consecutivas por parte do seu adversário apenas porque isso era a “meta” para aquele baralho, o meu interesse em Hearthstone morreu, foi atirado ribanceira abaixo, cortado em pedacinhos e dado a comer aos peixes. Independentemente do meu afastamento, Hearthstone foi conquistando o seu espaço. A simplificação e gratuitidade atraíram e atraem mais e mais jogadores, ainda que depois seja exigido um investimento de tempo e/ou dinheiro para criar um deck verdadeiramente competitivo. Mas não, não é para mim. Não era, não é. Percebo que a sua simplicidade e acessibilidade sejam selling points para alguns amigos que o vêem como um amuse-bouche para relaxar a mente enquanto jogam despreocupada e mecanicamente, mas não é isso que procuro num jogo. Não é, definitivamente, para mim.
Pelo meio, o meu amor por TCG passeia-se por jogos menores, mas não menos bem conseguidos. Recordo-me de Spectromancer com especial carinho, ele que me acompanhava algumas noites quando estava fora de casa em trabalho. Conheci-o como browser game. Apaixonei-me por ele e consegui arranjar uma versão desktop. Saiu entretanto para o Steam e, um dia, voltarei a jogá-lo, for old times’ sake.
Entretanto, algures no meio de Witcher 3, Gwent ganha dimensão. O mini-jogo dentro de um soberbo jogo está extraordinariamente bem feito, polido, interessante. Há algum desequilíbrio causado pelas cartas mais fortes, mas é contra AI, por isso não há problema. Usufrui-se pelo gozo da coisa, pelo coleccionismo, pelo esplêndido universo de Witcher e porque a aparente Quimera que era este jogo de cartas dentro de um RPG estava, na verdade, muito bem feita. Tão bem feita que a CD Projekt Red lançou um daqueles que tinha tudo para ser “o” jogo de TCG do momento. Gwent surge como standalone numa versão de cara lavada, simplificada, bem trabalhada, exigente, rica e democrática. O jogo é fantástico e não precisa dos meus elogios para ter uma tracção própria, atrasada pelo momentum que Hearthstone ainda tem e por um pequeno-grande erro crasso: no fim do período de Beta, a esmagadora maioria das cartas foi modificada, forçando aquela que tinha sido uma aprendizagem gradual a um mergulho no charco de centenas de cartas desconhecidas. Forçado a sair da minha ténue zona de conforto e com tempo limitado, afastei-me, não sem alguma mágoa. Queria mais Gwent. E tê-lo-ia! Thronebreaker seria lançado este ano, depois de MTG Arena.
Falemos então de MTG Arena. O jogo seria um ribombante sucesso, seria o verdadeiro dono e senhor, reconquistaria o trono perdido para Hearthstone se…. não tivesse chegado 4 anos atrasado. Hearthstone saiu em 2014. MTG Arena chega-nos, em beta, em 2018. Está, como o João Correia aqui diz, excelente, com um sem-número de cartas, com as boas velhas mecânicas de Magic: The Gathering a funcionar em pleno, com uma forma de treinar, aprender e desbloquear novas cartas aparentemente acessíveis a todos. Tem tudo para funcionar, tem tudo para se impor como líder… tudo, menos o tempo. O tempo e a acessibilidade. Refundido num launcher próprio, perde-se para os que usam serviços agregadores de jogos para serem lançados, divulgados e actualizados. MTG Arena parece-me um copo de água fresca quando já se morreu por desidratação. Ainda assim, para amantes do género, merece uma instalação e umas jogadas valentes. O que ali está tem qualidade e muito, muito por onde jogar.
Voltemos então a Thronebreaker – seguindo um critério temporal, joguei-o semanas depois de MTG Arena. Das iniciais reacções ambíguas à adoração, a distância foi curta. Quando vi anunciado um novo jogo de Witcher, fiquei radiante. A iridiscência radiante reduziu um bom bocado quando vi que era, sobretudo, um jogo de Gwent misturado com um story-driven RPG em vez do Action RPG que eu queria que fosse. Mas ohhhh, como é bom enganar-me! Thronebreaker está absolutamente fantástico. Uma história cativante, bem escrita, com twists q.b…. O jogo mistura o deambular por um mapa com componentes a fazer lembrar Banner Saga, em que as decisões afectam efectivamente a história e a nossa entourage. As batalhas, essas, são em Gwent, sim, mas há aqui um agri-doce que salta à vista, além da brilhante análise que o João fez ao jogo. De positivo, destaca-se a percepção de que Gwent está tão soberbamente concebido que funciona de três formas diferentes, em Witcher 3, Gwent e Thronebreaker. Três jogos diferentes com a mesma base sólida. Aquilo que funcionava de uma maneira em Witcher 3, funciona de maneira diferente em Gwent e é mudado de novo para Thronebreaker… mas é feito de forma intuitiva, gradual, inteligente, e permite que tanto funcione para um jogador experiente dentro da série como para quem entra em contacto com Gwent pela primeira vez. Falta mencionar o negativo: com três versões completamente distintas de Gwent, fracciona-se a comunidade e não é possível dominar com a mesma mestria as três versões do jogo. Para mais, em termos de marca, a coisa complica-se. Quando dos Gwent estamos a referenciar, afinal? Em todo caso, o Gwent em Thronebreaker funciona, é cativante, desafiante e muito divertido. A inclusão dos puzzles como forma de explorar novas mecânicas e sinergias é absolutamente genial e obriga a uma mudança de ritmo na abordagem ao jogo. Estou a adorar Thronebreaker e, finda a LONGA campanha, espero embrenhar-me na sua vertente multiplayer com algumas das galinhas do Rubber. A diversidade de baralhos que é possível construir e a variedade de jogos possíveis deixa essa porta mais que aberta.
Mas, eis que surge Artifact! Lançado esta semana, o mais recente projecto da Valve granjeia já um número significativo de adeptos e muita curiosidade. Afinal, não é todos os anos que a Valve lança um jogo novo, e desta feita, a assinatura vem debruada a ouro, com Richard Garfield, a mente por detrás de Magic: The Gathering, a assumir as despesas da criação de Artifact. O nosso Pedro Nunes já explicou mais ou menos como funciona o jogo, e eu, confesso, mal posso esperar por lhe por as mãos em cima. Se Warcraft tinha lore considerável para alimentar Heroes of the Storm, a verdade é que Dota, nascido da mesma ninhada, não lhe fica muito atrás. E mesmo deixando cair partes por força da propriedade intelectual da Blizzard, certo é que ao longo dos anos Dota 2 tem vindo a consolidar um lore próprio que, ao invés de ser meramente aproveitado para dar umas pinceladas de interesse no jogo, está por detrás de toda a mecânica inerente. Artifact é um jogo de cartas num universo de Dota 2. Os Ancients estão ligados por 3 caminhos, ou lanes, cada um deles protegido por torres. A defendê-los, os Heróis, apoiados por vagas de incontáveis creeps.
A micro-definição de Dota 2 (podem vê-la em maior detalhe na extensa série de artigos d’O Evangelho) confunde-se com a definição de Artifact. Há 3 tabuleiros, em cada um uma torre. Nele, dispomos os nossos Heróis que, além de lutar, nos permitem lançar magias e habilidades para a lane que ocupam. Sem Heróis numa lane, deixa de ser possível lançar a maioria das habilidades para lá, ficando essa entregue aos Lemmin… creeps! Escusado será dizer que os heróis, as magias e equipamentos são alusivos aos heróis que constam no Dota 2, e é interessante ver até que ponto a mente de Garfield foi capaz de transformar em cartas as componentes de um jogo tido como o MOBA mais complexo do mercado. O resultado é um jogo com várias camadas de complexidade a escalar consoante a nossa proficiência no mesmo. A abordagem parece ser simples o suficiente para apanhar novos jogadores, mas com degraus de complexidade suficientes para agarrar os que gostam de um jogo mais elaborado, com maior profundidade e longevidade. Ainda é cedo para dizer como tudo funcionará em termos da essência dos TCG – a troca/venda de cartas – mas a mesa está posta para um banquete que se afigura fantástico. E os primeiros torneios de Artifact já começaram a aparecer, com prémios dignos de registo, como é, aliás, apanágio da Valve.
Veremos se a pedrada no charco é suficiente para destronar Hearthstone. O facto de Artifact ser pago dificultará as coisas, mas a acessibilidade das cartas, a abertura perceptível da meta e a possibilidade de monetização e retorno para os jogadores previsto, é capaz de equilibrar a balança. Que vos parece?