Preâmbulo para a malta mais velha: o título não é uma piada ao famoso momento protagonizado pelo Telmo do primeiro Big Brother e pela forma como ele pronunciava a expressão francófona fait divers de forma anglófona. Os “mergulhadores da luta” como há muito brincamos, não são para aqui chamadas, ainda que por ironia Storm Boy: the Game inclua também mergulho. Mas já lá mergulhamos no assunto.
Já leram Storm Boy, o livro de 1964 escrito por Colin Thiele? Incorrendo no risco de reduzir a sua expressão, acredito que para qualquer pessoa que não tenha feito o ensino primário na Austrália a resposta é negativa. O que provavelmente é uma perda, assim como sinto genuinamente que a Humanidade perde, e muito, por não ter a sorte de ler Sophia de Mello Breyner desde a infância. Neste caso Storm Boy é uma obra infantil emblemática para os australianos como A Menina do Mar é para nós: fazendo parte da cultura colectiva da Austrália.
Não conhecendo a história, deixei residir nos ombros desta adaptação a videojogo do Blowfish Studios, residentes na Austrália, de me contarem esta bela história de amizade entre um rapaz um e um pelicano chamado Mr. Percival.
Storm Boy: the Game é bonito, e cativante. Daqueles jogos que parecem ter transportado a direcção artística de um bom livro de ilustração directamente para o ecrã, com a missão de transpor essa vontade narrativa de um meio para o outro. Grande parte da sua curtíssima duração decorre no areal onde o rapaz interage com um aborígene australiana, com os pelicanos e com o mar, e a forma como o seu 2.5D ajuda, e muito, a mergulhar-nos no doce conto de Thiele. Um jogo realmente belo que cativa instantaneamente qualquer um, e que quase nos obriga a sentar e tomar atenção, porque sabemos que se vai contar uma boa história.
Não demoramos muito a deparar-nos com os diversos mini-jogos que Storm Boy: the Game inclui como interlúdios do seu storytelling como forma de nos entreter. O primeiro é o de recolher 100 bivalves escondidos no areal. De seguida atirar peixes para o bico dos pelicanos. Uma sequência de mini-jogos inconsequentes que muitos podem justificar com “mas não importa que sejam fracos que o jogo é para crianças”.
Esta é uma das maiores falácias de quem quer produzir conteúdo infantil e foi algo que aprendi nos primeiros dias de carreira enquanto ilustrador a trabalhar com uma das mais profícuas ilustradoras portuguesas, a Carla Nazareth. Criar conteúdo cultural para crianças merece o mesmo respeito intelectual que qualquer outro conteúdo, e se a excelente produção de literatura e ilustração infantis portuguesas já há muito o provaram, é curioso ver um estúdio de videojogos australianos tentar fazê-lo noutro media e falhar redondamente. A dificuldade de produzir bom conteúdo infantil não é o de que “eles aceitam qualquer coisa”, mas muito pelo contrário. É conseguir produzir algo interessante o suficiente que consiga estimular um público tão atento e tão ávido de conhecer e contactar com mais e melhores objectos culturais à sua volta.
Os mini-jogos, que são os momentos mais interactivos de Storm Boy, têm vários problemas associados. O primeiro é que tornam óbvio que só existem enquanto preocupação dos seus autores de não ter apenas um jogo narrativo no qual o texto vai surgindo quando passamos por certos pontos de trigger e pouco mais. O segundo porque esse óbvio “martelanço” dos mini-jogos e o facto de “serem para crianças” tornou-os insípidos, quando há muito companhias como a Nintendo sabem mostrar que é possível criar mini-jogos interessantes, desafiantes, divertidos e com um leque alargado de público, do infantil ao adulto.
Em Storm Boy: the Game os mini-jogos são apenas fait divers: perdas de tempo que nos fazem desaparecer o interesse na força maior de todo o jogo: a adaptação narrativa do livro de Thiele. A custar 4,99€ para uma duração de 15 minutos de conteúdo, acredito que este jogo teria muito a ganhar se os seus autores tivessem perdido os pruridos de o assumir como um jogo narrativo, com ou sem o tom infantil. O receio infundado que um videojogo só o é se tiver interacções lúdicas acaba por derrear o princípio base que deveria ter norteado esta adaptação de Storm Boy: o de contar uma história.