Várias são as vertentes filosóficas que defendem que todos nós temos um propósito, e, para que tal aconteça, há uma série de condições que têm que ser reunidas para que esse mesmo objectivo se concretize. Tanto podem ser acções, ideologias ou o simples facto de existir (se acreditarmos em determinismos), mas, elas têm que ser reunidas de qualquer das formas. Não é só na vida que isto acontece (não que tenha grande experiência no assunto), mas também em videojogos, RPGs de mesa e na criação de conteúdo em geral. Mas como é uma rubrica sobre os segundos, vamos permitir que os mesmos sirvam de ponte para as demais analogias.

O designer de um RPG, antes de começar a criar o jogo, por norma, terá uma ideia. Ideia essa, que também por norma, irá procurar um determinado objectivo. O processo pode ser invertido, com a derradeira ideia a surgir/revelar-se durante o processo de criação, mas vamos manter o processo de pensamento inicial. Assim que criamos, há algo que queremos atingir. Há uma experiência que queremos transmitir e que queremos que se concretize da melhor maneira possível.

Dungeons & Dragons, por exemplo, é um excelente jogo de fantasia medieval, mas será que só conseguimos passar essa experiência recorrendo às várias mecânicas que o jogo utiliza? Se calhar não, uma vez que Pathfinder consegue fazer o mesmo com diferentes mecânicas embora seja possível apontar semelhanças.

E já que estamos a falar das mecânicas, e enquanto temos Dungeons & Dragons debaixo das lentes do nosso microscópio, quanto é que podemos mudar e/ou retirar até continuarmos a ter o mesmo jogo?

Enquanto pensamos numa resposta, passemos para algo mais simples e linear, que é o caso de Dread, um jogo de suspense que vê como grande forte na concretização do seu objectivo uma torre de Jenga que se vai tornando cada vez mais instável à medida que peças vão sendo retiradas com as acções dos jogadores. Ainda por cima, os riscos são elevados uma vez que se a torre cair, o jogador culpado pelo sucedido vê a sua personagem removida do jogo.

Aqui o Mestre de Jogo apenas tem que preparar uma narrativa apropriada ao tom da sessão. Isto, associado à mecânica de jogo, cumpre o objectivo do mesmo: criar uma história de terror (será que as mecânicas de Dread funcionariam numa sessão de Honey Heist?).

E já que estamos a falar de terror, permitam-me puxar a brasa à minha sardinha e dar o meu cunho pessoal nesta temática. Dentro do projecto Rola Iniciativa, criei o jogo Asilo, um jogo de terror psicológico em que cada jogador interpreta o papel de um residente de um estabelecimento focado na reabilitação dos clinicamente insanos. Tanto pode ser um paciente, como um auxiliar de acção médica, um enfermeiro ou um médico. Usa o normal dado de seis faces e tem apenas um único stat: sanidade. Os jogadores vão perdendo sanidade consoante os horrores que vão presenciando no asilo. E quando digo perdem, perdem mesmo. O dado não é rolado para determinar se o jogador resiste ou não à intensidade do que presenciou. Ele simplesmente perde sanidade, havendo poucas possibilidades de alguma vez a recuperar.

A minha ideia na criação do Asilo foi mudar a forma como histórias de terror são contadas. Uma vez que eu quero passar emoções fortes, quão mais simples forem as mecânicas à minha disposição, mais fácil será cumprir esse propósito. Face à minha experiência a mestrar Call of Cthulhu 7th Edition, fiquei com a clara sensação que, mesmo que com um ambiente bem construído, as mecânicas de resistência aos horrores, de perda de sanidade e de consequente aplicação de manias e fobias podiam atingir níveis de complexidade/incerteza que quebravam essa mesma imersão. Não deixam de cumprir o seu propósito, mas será Cthulhu Dark uma melhor alternativa?

Apocalypse World e outros tantos jogos Powered by the Apocalypse apresentam dinâmicas diferentes e interessantes, com o Mestre de Jogo a descobrir o mundo dos jogadores e não ao contrário. As dinâmicas de perguntas e respostas resultam muito bem, permitindo que grandes histórias, tanto apocalípticas como não, sejam contadas. Contudo, não é o ideal para recriar a mesma experiência de Dungeons & Dragons (combate, loot, etc.).

Vampire: The Masquerade é um jogo de intriga política, com teias extensas mais ou menos corrompidas a serem puxadas por diferentes clãs de vampiros escondidos da nossa sociedade enquanto procuram levar a sua avante. E se eu pegar nas regras de Vampire e fizer um dungeon crawl? Estarei a jogar Vampire: The Masquerade porque estou a usar as regras, ou Dungeons & Dragons/Pathfinder porque estou a optar por uma das dinâmicas de jogo mais características?

Isto quase que me leva a perguntar se o sistema interessa, mas isso é uma questão para outra altura. Para já, quanto ao design e ao seu propósito, a resposta está nele próprio. Se quisermos contar uma história de fantasia medieval, se for essa a nossa vontade e a nossa intenção, então tanto faz usar as regras de Dungeons & Dragons ou de Pathfinder. Se quisermos apenas contar uma história de terror, tanto faz usar um dado de seis faces como uma torre de Jenga. Isto única e exclusivamente se encararmos a experiência como o propósito. Se assim for, se este for o objectivo primário, então a forma como se chega até ele é secundário, ficando o jogo escolhido elegível às preferências de cada um.