Os suspiros cinzentos do mundo colorido de GRIS foram lançado no passado dia 13 e no sábado acabei por comprá-lo e jogá-lo num trago, como quem bebe a tristeza de forma sôfrega e irreflectida. O primeiro jogo do Nomada Studio é muito possivelmente o mais belo jogo que joguei. Mas os elogios, possivelmente, ficam por aí.
Volto um pouco atrás, há quase quatro anos, quando o Miguel Nogueira falava de The Order: 1886 como o pequeno jogo que queria ser um grande filme. E acreditem que trazer The Order: 1886 para um artigo sobre o deslumbrante GRIS pode parecer ofensivo à primeira vista, mas vai ser justificado. O Miguel lembrava, e bem, que um dos maiores (de entre vários) problemas do jogo do estúdio Ready at Dawn se prende precisamente em querer colocar-se numa linha divisória entre os videojogos e o cinema, falhando em ser sequer um objecto mediano em qualquer um dos dois meios. Ali pelo meio relembra David Cage que muitos apelidam como um realizador frustrado que encontrou no mercado dos videojogos um público permeável às suas histórias e ao seu cruzamento narrativo e interactividade, passando o ónus do decisor para a agência do jogador. Para mim acertou em fazê-lo em Heavy Rain e em Detroit: Become Human, mas falhou em Beyond: Two Souls, especialmente por se ter desequilibrado na corda bamba entre os dois meios.
Tenho dúvidas que o Nomada Studio seja um bom estúdio de videojogos, mas tenho a certeza que é um brilhante estúdio de animação. E é sobretudo um colectivo de criadores que percebeu que o caminho certo para a sua criação seria infinitamente mais vantajoso por um media ali tão irmão do cinema de animação, com um público que seria capaz de reconhecê-lo da forma que merece.
Façamos um pequeno exercício de abstracção e imaginemos que GRIS não é um videojogo mas é um filme de animação. Um filme que tem de entrar num mercado dominado pelas grandes produções, onde dificilmente o sucesso comercial do seu objecto consegue sequer rivalizar com os dois maiores estúdios, Pixar e Disney, ou com os 3 ligeiramente abaixo, WB Studios, Dreamworks e Sony Pictures. Um meio artístico estável onde existe espaço para o reconhecimento, qualidade e experimentação (que o diga Tomm Moore), e reconhecimento artístico e retorno comercial (que o diga Travis Knight, sem eu saber ainda se a sua estreia em filmes live action foi um sucesso ou um falhanço), e onde a animação tradicional e o stop-motion parecem ter perdido caminho, infelizmente, para a rentabilização da CGI (que o diga o estóico Peter Lord). GRIS, seria, quanto muito, apenas uma pequena memória de uma animação tradicional de qualidade que ficaria esquecida na écume des jours pelo meio de milhentas partilhas e vídeos espalhados pelas redes.
Fazer de GRIS um videojogo é um passo de génio. Fazer a ponte entre os videojogos e o cinema de animação com esta elevação não é para todos. Fazê-lo com esta qualidade visual, a aproveitar, e bem, uma paleta de harmonias triádicas presentes em muitos objectos contemporâneos, com brincadeiras de filtros e jogos de saturação com primeiros e segundos planos dá-nos a certeza que o Nomada Studio é composto por artistas, na acepção conceptual e técnica do termo. A composição musical que acompanha todos os momentos do jogo, devidamente engatilhadas nos pontos certos e nas mudanças de ambiente são mais uma vez sinónimo da sensibilidade artística dos seus criadores. Algures no tempo os espanhóis do Nomada Studio perceberam que o público dos videojogos seria muito mais vulnerável ao seu brilhante showcase artístico do que o público do cinema de animação (que, apesar das intersecções, não são o mesmo público). Fazê-lo, garantiu-lhes uma pequena (e quiçá fugaz) entrada no mediatismo dos videojogos, com urras e orgasmos espasmódicos até dos jornalistas de videojogos mais quadrados que têm pulsões nocturnas com a ideia de jogar o mais recente Call of Duty.
Novamente, e repito, GRIS é possivelmente o jogo artisticamente mais surpreendente que joguei, pelo excelente bom gosto de interligar elementos que facilmente veríamos num bom livro de ilustração (indiscutível a influência estético-cromática da Tara Mcpherson) deste milénio adaptado ao multimédia. E parece quase injusto afirmar que GRIS é artisticamente um dos mais brilhantes videojogos que já joguei e ao mesmo tempo afirmar que é pouco mais que isso. Talvez seja mais fácil explicar que é um bom filme de animação e um videojogo aceitável, ou até dizer que é um videojogo simultaneamente brilhante em muito do que mostra e constrói e mediano naquilo que nos faz interagir.
Comecemos pelo conceito de GRIS, definido pelos seus autores como “uma aventura de uma jovem rapariga no seu próprio mundo, lidando com uma experiência dolorosa na sua vida”. Não vou ser picuinhas de começar a apontar-lhe o dedo como o tema corriqueiro do indie pseudo-emocional nos dias de hoje, porque todos sabemos que é. Mas porque ver esta descrição escrita ou ter outra coisa qualquer seria precisamente a mesma coisa. Há jogos emocionalmente brilhantes que sentimos que esse peso, essa exploração narrativa e emocional são o âmago de todo o objecto. Em GRIS sentimos que essa construção de aventura de superação e de dor é apenas uma vestimenta para justificar a brilhante construção visual de todo este mundo.
Se parar para pensar naqueles que são, para mim, as melhores experiências narrativo-emocionais do passado recente consigo perceber a interligação honesta entre o seu game design e a construção do mundo onde foi inserido. Seja o caso recente de The Gardens Between (que ainda concorre no meu gosto pessoal como melhor jogo de 2018) que inteligentemente soube criar uma simbiose mecânica do nosso fluxo do tempo e da reconstrução das memórias de infância das protagonistas. Ou até RiME e The Sexy Brutale que, analisando a jusante da experiência, conseguimos identificar todo o processo criativo da sua construção. Não preciso sequer de referir Last Day of June, que para além de ser um dos meus videojogos favoritos da década, conseguiu partir de uma composição de Steven Wilson e criar um mundo coeso, contido, com uma experiência de game design com os pés assentes na dura viagem emocional que fazemos desde que começamos o jogo.
E antes que sintam que a construção de uma aparente narrativa em subtexto em GRIS menos directa e menos óbvia possa ser o que me afasta emocionalmente dele, eu rebato com Gorogoa. Um jogo visualmente brilhante e simbiótico com a sua existência mecânica e que deixa pequenas migalhas sugestivas de uma história em subtexto que vai sendo tecida ao longo das suas vinhetas, com uma interpretação aberta e múltiplas leituras. O problema, não é, de todo, o quão directo ou subtextual é a narrativa. É a honestidade da mesma, e o quanto a falta de ritmo pode penalizar a eficácia e a emoção de um bom storytelling.
GRIS é visualmente brilhante mas sinto-o emocionalmente desonesto. As emoções são construídas, pensadas, falseadas em momentos-chave para nos obrigar a sentir o que os autores querem que sintamos naquele momento. Há muito pouco que indique ou assuma a tragédia da protagonista ao longo dos seus quatro “mundos”, e raras foram as vezes ao longo das três horas que demorei a terminá-lo em que me senti artisticamente completo. A manipulação emocional faz parte da criação artística, mas a mais eficaz das manipulações é aquela que nem se percebe que existe, o que não é o caso do emocionalmente estéril GRIS. Numa tríade artística (visual, musical e emocional), GRIS domina as duas primeiras mas falseia a última e isso é perceptível. GRIS é assumida como uma tragédia mas poderia ser uma história qualquer. Tenta mimetizar o ambiente e o percurso de outras magnum opus do meio como Journey e ICO, mas falha redondamente. E falha por três razões muito simples.
A primeira é a sua insipiência mecânica. GRIS é um puzzle platformer interessante, mas parece ter-se perdido sobre o seu próprio vislumbre artístico para conseguir olhar para bons exemplos passados. O segundo erro é a sua falha rítmica, perdendo-nos muitas vezes por sequências onde o maravilhamento visual já se esfumou e tudo o que resta é perceber que nada está a acontecer. O nada, como muitas vezes digo aos meus alunos em Belas-Artes, é um elemento criativo válido. Mas GRIS perde-se no equilíbrio entre brincar com a existência e a triste revelação do vazio de conteúdo. O terceiro problema é inverso ao que acontece com a grande maioria dos estúdios indie, maioritariamente constituídos por programadores e game designers, cujos jogos se perdem pela falta de solidez artística. GRIS é o inverso. Uma aventura de artistas gráficos que se perdeu na fragilidade de um game e level design medianos, que prejudicariam a experiência não fosse o invólucro que o rodeia ser, sob pena de me repetir, deslumbrante.
Pareço excessivamente duro com GRIS, e talvez até o seja. Mas talvez o esteja a ser pela maravilha artística atingida não ter o merecido e devido acompanhamento mecânico. Pela falta de auto-reflexão dos seus autores em perceberem que os problemas de ritmo poderiam ser corrigidos com pequenos cortes, que deveriam deixar de temer fazer uma experiência mais curta e receber os obrigatórios comentários negativos por isso do que sacrificar a pauta que nos leva pela alma a jogá-lo. E talvez o seja por achá-lo emocionalmente forjado. Por conseguir ver no processo criativo que tudo começou com uma série de ilustrações e animações brilhantes ao qual foi martelado um puzzle platformer pela obrigatoriedade mecânica de ter jogabilidade clássica para o jogador mainstream (Mårten Jonsson e o seu Star Sky – ブルームーン riem-se de terem conseguido com apenas silhuetas e um jogo no qual apenas podemos andar num espaço bidimensional criar uma série de subnarrações num jogo aparentemente simples). E por ver que a descrição da “aventura” de uma rapariga a ultrapassar um evento traumático é superficialmente aplicado a este jogo, querendo associar uma carga emocional onde tantos outros congéneres indies o fizeram de forma real e de coração aberto.
Mas no meio de tanta crítica, GRIS é uma experiência verdadeiramente obrigatória se pensarmos nele como um meio termo entre um brilhante filme de animação e um videojogo com intenções narrativas e artísticas, mas especialmente como merecida recompensa a um colectivo de artistas visuais e um músicos que o criaram. Mas senti-lo emocionalmente estéril dificilmente me permitiria vê-lo como pouco mais do que um jogo artisticamente brilhante, e infelizmente a anos luz da tal obra magistral total que tantos apregoam.