Ele há patinhos feios que, de facto, dão belos cisnes. Ancestors Legacy é uma daquelas pérolas que, por uma razão ou por outra, passou despercebido ao grande público. Presumo que por um insuficiente investimento em marketing, uma vez que o jogo era, até há bem pouco tempo, desconhecido para mim. Assumo que, face ao número reduzido de vendas, tenham optado por fazer uma promoção em grande nas Steam Winter sales, e foi aí que o encontrei, clamando por atenção, com um desconto de 50% ou mais. “Olhem-me! Vejam-me!”, parecia gritar o jogo.

E eu olhei.

E o preço tem destas coisas. Consegue criar um preconceito no jogador. Acima de determinada barreira de preço, esperamos encontrar algo de que já tenhamos ouvido falar. Esperamos um jogo polido, badalado. A verdade é que o encontrei por pouco mais de 14€ e, face a isto as minhas expectativas eram de encontrar um jogo razoavelzinho. Talvez um pouco acima do nosso corrente “meh”, eternizado na nossa “Hora do Meh”. E é bom ser surpreendido!

Ancestor’s Legacy é um jogo de estratégia em tempo real, um género que tem vindo a cair em desuso recentemente. Longe vão os tempos de Dune 2, Age of Empires ou Command & Conquer. E a mais recente iteração deste último é mais um embaraçoso soluço para uma franquia de RTS do que um desinteressado “meh”, como aqui discutimos. E mesmo franquias como os Total War, que vão saltitando de temática em temática, fogem um pouco ao verdadeiro RTS, adicionando uma componente por turnos e uma abordagem mais pausada. Pois bem, Ancestors Legacy é um dos puristas. A surpresa começa nos pormenores, nos acabamentos. A componente visual, a fazer lembrar o traço que podemos ver em Thronebreaker, com vinhetas bem detalhadas recheadas de fortes contrastes, todo o ambiente sonoro, com sonoplastia e banda sonora original e orgânica a fazer lembrar os melhores momentos de Witcher 3 fazem arregalar o olho de surpresa. “Eh lá, mas o que é isto afinal?”

Amigo, talheres, não?

Ao olho arregalado, segue-se o queixo descaído, com a cutscene da campanha inicial a fazer lembrar um desembarque na Normandia reminiscente do Resgate do Soldado Ryan. Cru, pesado, violento, detalhado. Bom! E daí, saltamos para o jogo. Sons de batalha, gritos, confusão por entre o chocalhar de armas e o arranhar de escudos. É de encher a vista.

As unidades são, na verdade, conjuntos de unidades individuais, numa solução híbrida entre as unidades singulares de Age of Empires e as miríades de unidades em jogos como Cossacks. Um grupo de lanceiros é composto por perto de uma dezena de unidades. Movimentamo-os como um só, mas cada uma combate – e sofre – individualmente. Há ferimentos de maior ou menor gravidade e há mortes que afectam o indivíduo e não toda a unidade e é deslumbrante fazer o zoom in e mergulhar na confusão de hastes, espadas e escudos e acotovelarem-se por um espaço para brandir uma arma e desferir um golpe fatal. A batalha não é uma asséptica esgrima, mas uma lamacenta peleia ofegante de uma amálgama de corpos. E é genial ver o detalhe aqui incutido pela Destructive Creations e a facilidade com que podemos saltar dessa claustrofóbica visão para uma limpa perspectiva geral do campo de batalha. A exemplo de jogos da franquia Total War, as unidades não são inteiramente responsivas. Estando embrenhada numa batalha, a ordem para se deslocarem para outra posição não é cumprida – no imediato, ou de todo. Essa dose de realismo adiciona à imersão e lança uma mecânica de desafio extra. No meio do caos da batalha, um recolher e reposicionar ordeiro são, afinal, uma utopia inalcançável. Na urgência, resta-nos ordenar a retirada de um grupo combatente. Neste caso, abandonarão o combate de forma mais lesta, reagrupando e correndo para longe durante determinado tempo, em que se mostram não responsivos às nossas ordens. Só depois de recuar um bom bocado e reagruparem permitem novamente ser controladas e reposicionadas no campo de batalha. Agrada-nos.

Antes de invadir a ilha vizinha, tome o seu antiemético

As baixas em cada grupo de combate podem ser repostas de várias formas: Em caso de ferimentos, basta-nos repousar por um tempo, montando um improvisado acampamento onde as nossas hostes recuperem forças. Porém, caso algumas unidades tenham sido mortas, esse método não será suficiente. Desde que haja um sobrevivente do grupo, é possível enviá-lo para a área de uma das nossas aldeias e lá solicitar a reposição dos números daquele grupo. É mais moroso e paga-se, mas custa sempre menos do que recrutar todo um grupo de combate de raiz.

Há 4 facções em combate. Vikings, Eslavos, Anglo-Saxónicos e Germânicos, pelo que daqui se torna relativamente fácil estipular a era em que a acção se desenvolve. Cada facção tem, naturalmente, unidades e edifícios próprios, bem como um conjunto de características exclusivas. No geral, as unidades não diferem radicalmente entre si. Afinal, um arqueiro é um arqueiro. Mas cada facção dispõe dos seus arqueiros específicos. Os Vikings têm os seus Norse Archers. Os Germânicos têm os German Archers, mas têm também os Crossbowmen. Os Anglo-Saxónicos têm os Slingers, com as suas fundas, e os Longbowmen, e os Eslavos têm os seus Slavic Archers e os Mounted Archers.

O caos dos combates cessou, por momentos, para que Barnabé procurasse a sua lente de contacto caída. E todos ajudaram.

E são, mais uma vez, este tipo de pormenores a darem tempero ao jogo. Com uma base igual, cada unidade é distinta das outras e possui também habilidades activáveis diferentes. Uns disparam mais rápido, outros ganham mais alcance, outros instilam o terror nos inimigos, outros aceleram a persegui-los… há um bom número de habilidades activáveis que nos permitem mergulhar nesse estrato de maior micro-gestão para tentar obter o melhor desfecho na batalha que disputamos. Unidades experientes ganham níveis que podemos personalizar, focando, por exemplo, o ataque, a defesa ou a sua rapidez de resposta ou mobilidade. Note-se que é perfeitamente possível combater sem mergulhar neste tipo de complexidades, simplificando a experiência, mas tomando-lhe o gosto, torna-se interessante fazer esta gestão das nossas unidades. São pormenores, claro, mas são pormenores que adicionam classe a este jogo, injustamente votado à indiferença por parte de muitos.

O cenário não é um mero prop. É relativamente dinâmico, com um ciclo de dia e noite a influir no jogo – e a permitir-nos, novamente, a decisão: vale a pena equipar archotes, aumentando o nosso raio de visão mas também acabando de vez com as nossas possibilidades de um ataque de surpresa?

E por falar em ataques de surpresa, as emboscadas fazem parte da componente táctica. unidades escondidas em zonas com vegetação alta são virtualmente invisíveis a outras que passem por lá perto e Ancestors Legacy vive desses momentos em que montamos uma emboscada com armadilhas no terreno a apanhar desprevenidos um esquadrão inimigo, apenas para lhes saltarmos em cima numa corrida desenfreada de espadas enquanto, mais longe, os nossos arqueiros desbastam ainda mais os seus números. Seus. Seus… Seus e nossos! Porque uma das interessantes características do jogo é o friendly fire que os arqueiros conseguem desferir. De novo, salta à vista a ideia de que muita coisa foi deixada ao acaso.

A confusão gerada pelo sistema de pagamento automático das portagens

Assim, as várias campanhas podem demorar-vos umas largas dezenas de horas a concluir, aprimorando os vossos conhecimentos sobre os diferentes tipos de unidades de cavalaria, artilharia e infantaria do jogo e as devidas interacções entre ambas – há um útil memorando em cada unidade, mencionando aquelas contra os quais estas são fortes ou fracas. É algo intuitivo, para quem está dentro do género, mas útil relembrar. Assim, lanceiros serão sempre bons contra cavalaria, que, por sua vez, domina os guerreiros com escudo que, por sua vez, se revelam eficazes contra arqueiros e por aí em diante.

Além das horas em campanha, o jogo oferece ainda vários tipos de modo multi-jogador que adicionam largas horas de desafio e entretenimento e que só sublinham a surpresa por um título com este nível de mecânicas, sons e acabamentos estar aparentemente tão esquecido por tudo e todos. Ancestors Legacy é um jogo verdadeiramente fantástico para adeptos de RTS que vale cada cêntimo do seu preço original a rondar os 30€ mas que é absolutamente imperdível se voltarem a encontrá-lo, como eu o encontrei, em promoção!