De todas as grandes febres globais em termos de media e franquias culturais, é possível que apenas The Walking Dead e Supernatural não me tenham mordido e injectado com a peçonha que nos deixa, à falta de melhor termo, “agarrados”. Nunca li a BD de Robert Kirkman e o meu primeiro contacto acabou por ser com a primeira temporada da série. Apesar do meu entusiasmo inicial, o ritmo e o aparente desnorte que a série de TV foi tendo rapidamente me fez desistir dela, e penso que ali no início da terceira temporada foi quando perdi definitivamente a vontade de acompanhar. Achei curioso que ao contrário de outras séries ou filmes, The Walking Dead, na TV, não me conseguiu abrir o apetite para o medium original. Consequência disto pode ter sido a saturação mediática que os zombies viviam quando a obra de Kirkman surgiu pela primeira vez no primeiro ecrã, desbravando espaço pelo enfado de um género que foi desgastado até à exaustão.
Tudo quase mudou com a chegada da adaptação a videojogo de The Walking Dead pela Telltale Games, que não só criou uma clivagem criativa de inovação no estúdio constituído por ex-membros da LucasArts, como é, para mim, umas das melhores experiências emocionais e narrativas do género.
The Walking Dead: Season One conseguia, com a sua magistral escrita, algo que a série de TV nunca conseguiu em mim: criar-me um elo, um reconhecimento e uma proximidade com personagens, um entendimento menos cartoonesco e cliché do apocalipse e da sobrevivência do que aquela que a TV usualmente mostrava. Personagens inéditos que cresceram ao longo dos 4 episódios, com Lee e Clementine a tornarem-se uma das parelhas mais emocionalmente arrebatadoras de que me lembro.
As temporadas seguintes esmureceram-me. De alguma forma senti que a minha maldição pessoal com The Walking Dead é que os primeiros grandes impactos são sucedidos por grandes desilusões. Percebi que o segredo da força da escrita da primeira temporada vivia quase exclusivamente do afecto entre Lee e Clementine, e que sem ele na segunda temporada a protagonista acabava por ser apenas mais uma em apenas mais um jogo sobre zombies. Terminei as seguintes temporadas com os ocasionais choques e confrontos de escolhas que a nouvelle vague de jogos da Telltale Games nos habituaram, mas nunca sem ter a mesma ligação ao enredo e ao elenco como na primeira temporada, e muito menos a Clementine.
Foi estranho sentir que sem a dinâmica de família improvisada entre ela e Lee, com as tensões e os riscos identificados na primeira temporada, eu próprio perdi o interesse e a preocupação sobre a vida virtual de Clementine. Desde a segunda temporada que ela, apesar de likeable, me era totalmente indiferente, e várias vezes senti que se os seus criadores decidissem matá-la e seguir a história com outro personagem, isso teria pouco impacto em mim.
Sete anos depois mergulhei na alegada temporada final, já no recobro da bancarrota da Telltale (que desenvolveu os dois primeiros episódios desta season) e da Skybound Games ter adquirido e continuado a série. As expectativas, essas, estavam pela rua da amargura. Não só a adaptação a videojogo de The Walking Dead há muito tinha perdido o gás, como senti que a fórmula cinematográfica da Telltale estava também ela ligeiramente gasta.
O que o primeiro episódio intitulado Done Running nos traz é exactamente o inverso. Possivelmente o melhor episódio de toda a série, com um grande sinal de amadurecimento de toda a equipa criativa que se coaduna com o próprio amadurecimento da protagonista, que é hoje uma adolescente com um rapaz de 5 anos a seu cargo.
Clementine e AJ chegam a uma pequena comunidade constituída apenas por crianças e adolescentes, resguardadas dos perigos do mundo dentro de uma escola para “jovens difíceis”. Com muros altos construídos originalmente para impedir os seus estudantes de fugirem, a escola acaba por ser o refúgio perfeito para Clem e AJ, no novo grupo de amigos que conhecem em Marlon e a sua espécie de Lost Boys.
A dinâmica de educadora e educando de Clem e AJ sintetiza a dinâmica dela com Lee, mas em papéis trocados. É interessante ver esta evolução de Clementine, no seu amadurecimento e no peso da responsabilidade. Quando a conhecemos era ela o olhar atento e assustado à procura de direccionamento, hoje é ele a luz que guia num mundo de trevas. Tê-la a criar AJ é o encerramento do círculo metafórico e pragmático de toda a série.
Este primeiro episódio conseguiu algo que a série de TV nunca conseguiu e que é um exercício de escrita difícil: criar uma história encerrada sobre si mesma em que as tensões entre adolescentes num ambiente hostil pós-apocalíptico não soassem bidimensionais ou lugares comuns. Cada um dos novos personagens apresentados tem uma linha de evolução, substância para se erguerem na história e são parte da coesão interna de todo o enredo.
A aparente paz encontrada pelos dois protagonistas, exaustos de uma vida de fuga é uma interessante mudança de tom. A sensação de escala dos problemas humanos pela clausura do espaço da escola permite que os problemas que advêm sejam mais relacionáveis e palpáveis.
O ritmo de desenvolvimento das várias relações dos personagens e do próprio enredo atinge neste Done Running um dos momentos altos da série, num episódio em que os zombies apenas pano de fundo para o dramatismo humano, esse sim, tomando o papel principal no palco.
O segundo episódio e também o canto do cisne da Telltale intitulado Suffer the Children acaba por ser menos interessante não só em termos de ritmo – com muitas das sequências a funcionarem como um harmónico desalinhado de evolução da narrativa – polvilhado com o que me pareceram excessivas sequências de combate que existem apenas porque sim, não adiantando nada de verdadeiramente dramático aos acontecimentos.
Algumas decisões narrativas e a escrita de diálogos soam circulares em relação à magnitude do primeiro episódio e poucas vezes tendem a não explorar o patamar de escrita atingida no seu antecessor. Ainda assim a última criação antes da morte da Telltale acaba por ter uma boa dose de desenvolvimento de personagens menos explorados em Done Running e que se demonstram muitos furos qualitativos de escrita das temporadas anteriores.
O terceiro episódio, Broken Toys, e o primeiro pela mão da Skybound (ainda que com criativos da extinta Telltale) é um bom ressurgimento à série que muitos julgavam estar perdida com a morte do estúdio norte-americano. Infelizmente a perda de ritmo que começou com Suffer the Children continua neste terceiro episódio com algumas escolhas de escrita do enredo e do diálogo (e não apenas consequência das nossas opções) a ficarem desfasadas em relação à construção progressiva dos personagens introduzidos nesta temporada, criando muitos momentos mortos-vivos (trocadilho não intencional) de excessiva lentidão rítmica.
Estamos a um episódio e a pouco mais de um mês da conclusão da história que começámos com Lee e Clementine, e a qual apenas esta sobrevive. O patamar de qualidade de escrita e de desenvolvimento e evolução de personagens do primeiro episódio desta temporada não só se equiparou ao que de melhor a primeira fez, mas para mim, ultrapassou-a. Não sei o que o futuro reserva, mas acredito que o quarto episódio, que terá, sem spoilers, a crueldade dos humanos vivos enquanto grande antagonista, uma conclusão difícil com Clementine a morrer. Isso não só abriria espaço para uma continuação deste mundo a posteriri pelos olhos de AJ, criando, se houver qualidade de escrita para isso, uma visão mais pragmática e quiçá insensível do mundo que Clementine não teve ao longo destas cinco temporadas.
The Walking Dead: The Final Season tem, para mim, dois méritos indiscutíveis. O primeiro de re-elevar a fasquia de uma série que há muito tinha perdido o seu fulgor, representando o talento de um grupo de criadores que viram a meio do percurso da sua gestação a sua empresa a falir. Por outro, mais pessoal, porque conseguiu algo que mais nada na franquia de The Walking Dead conseguiu: criar-me uma tremenda curiosidade em torno dos comics originais, e de saber mais sobre o seu mythos.
Em exclusivo na Epic Store deste este recém-lançado Broken Toys, o quarto episódio desta Final Season tem muito que atingir para conseguir fechar a temporada e a série tão bem quanto começou.