Travis Strikes Again: Ciclos dentro de Ciclos

Após a enérgica entrevista a Goichi Suda, não poderia faltar a análise ao seu jogo mais recente, Travis strikes again: No more heroes (TSA:NMH) para a Nintendo Switch. Com as expectativas refreadas pelo próprio criador, visto que este não se trata de um jogo da franquia principal, nada falta a não ser mergulhar de cabeça na última produção de Suda 51.

Sete anos passados desde o último jogo, o nosso protagonista Travis encontra-se refugiado, farto de ser perseguido pelos seus rivais. Badman, um ex-jogador de golfe e pai de uma das vítimas de Travis no primeiro jogo da franquia, procura vingança e, após muito vasculhar, encontra Travis numa caravana num bosque no meio do Texas. O ex-assassino agora dedica-se ao seu passatempo favorito, videojogos, e pouco quer saber de assassinatos ou vinganças. Os dois envolvem-se numa luta e acabam por ser sugados para o interior da Death Drive MKII, uma consola lendária cujo lançamento foi cancelado, sendo a unidade que Travis encontrou a única que se sabe existir. Juntos num mundo surreal e perigoso, Travis e Badman decidem unir forças para sair da consola e voltar ao mundo real. Descobrem também que se completarem as 6 Death Balls, os 6 jogos de lançamento da consola, terão um desejo concedido. Nunca rejeitando um desafio, Travis aceita ajudar Badman a completar os jogos e desejar a sua filha de volta à vida.

Esta premissa define claramente o ciclo de jogabilidade de TSA:NMH. Completamos um nível, derrotamos um boss, voltamos para a hub, desbloqueamos novas roupas e pedaços de informação crípticos sobre o enredo e acedemos a uma secção no estilo visual novel, em que encontramos a próxima Death Ball, repetindo-se o ciclo. Isto por sua vez torna a análise do jogo mais fácil, pois posso falar sobre cada um destes aspectos e da maneira como se encadeiam uns nos outros.

“Every good thing comes to some kind of end, and then the really good things come to a beginning again.”
― Cory Doctorow, Makers

Os níveis de TSA:NMH são todos diferentes e todos iguais, representando ao mesmo tempo um dos aspectos mais fortes e mais fracos do jogo, algo que se adequa ao quão ridículo e surreal este jogo é. Por um lado, todos os níveis representam um jogo diferente, com uma história, mundo e personagens diferentes. Antes de começarmos cada uma das Death Balls somos presenteados com um ecrã retro que simula o boot-up da consola, seguido dum teaser trailer que explica o enredo do jogo e as características da personagem principal, o boss que vamos enfrentar no fim do nível. Todas as introduções têm um estilo visual característico e proporcionam uma boa introdução à atmosfera do nível, sendo uma das minhas partes favoritas do jogo. Logo de seguida surge-nos um menu com o nome do jogo e a opção de o iniciar. Ao começarmos um nível Travis surge nu numa explosão de eletricidade, numa pose bastante familiar. Tudo isto contribui para gerar no jogador a ideia que está de facto perante uma consola e jogos reais, o que confere uma credibilidade incrível ao mundo de TSA:NMH. Além disso gera uma expectativa e interesse da parte do jogador, que o impele a querer progredir no jogo e descobrir a próxima Death Ball. Juntando o facto de cada mundo introduzir uma mecânica diferente, seja puzzles, jogos de corrida, plataformas ou labirintos, parece haver aqui uma receita para um bom ritmo de jogo, particularmente com a quantidade de estilo que os visuais e som deste jogo emanam. Todas estas diferentes facetas são ligadas por um combate hack and slash simples de aprender, mas com variedade suficiente para permitir ao jogador alguma customização e experimentação, existindo uma miríade de diferentes skills que o jogador pode mapear aos botões Y, X, A e B e aceder com um clique do gatilho esquerdo. Existe também um sistema de level up muito básico, que apenas confere bónus à quantidade de dano que Travis e Badman conseguem absorver e causar. No entanto, a opção de podermos escolher se queremos fazer level up, assim como a possibilidade de podermos alterar a dificuldade a qualquer momento de jogo, torna o combate tão difícil ou fácil como o jogador quiser. Quando juntamos todos estes pontos a uma produção audiovisual bem conseguida, obtemos um sistema de combate simples, mas viciante e divertido de jogar, com cores néon e explosões retro a povoar o ecrã enquanto limpamos hordas de inimigos. O sistema co-op ainda traz mais variedade ao jogo, pois existem skills e ataques que apenas podemos usar quando juntamos Travis e Badman em simultâneo.

Não é o tipo de pessoas que queres encontrar à noite num beco…

“So one must be resigned to being a clock that measures the passage of time…?””…Are we to grow used to the idea that every man relives ancient torments, which are all the more profound because they grow comic with repetition? That human existence should repeat itself, well and good, but that it should repeat itself like a hackneyed tune, or a record a drunkard keeps playing as he feeds coins into the jukebox…” 
― Stanisław Lem, Solaris

Com tanto ponto positivo no parágrafo acima, até parece que me estava a contradizer quando disse que os níveis também eram o ponto mais fraco do jogo. Bem caros leitores, o problema pode-se resumir numa só palavra: sobre-exposição. Tal como o a jogabilidade é um ciclo, também os meus sentimentos o foram enquanto jogava. Sempre que começava um nível, todas as novidades me puxavam para jogar e progredir, descobrir o que se encontrava em cada canto do nível e imergir-me nas novas mecânicas e enredos distintos, se bem que com alguma dificuldade. Há medida que progredia no nível, começava a sentir-me mais à vontade com estas novidades e atingia o tão laureado estado de fluxo, em que a dificuldade estava adequada à minha capacidade, oferecendo um desafio adequado à mestria, com algumas novidades sendo introduzidas mais ou menos a metade do nível. No entanto, este estado invariavelmente acabava por cair na monotonia na última metade ou último quarto do nível, no qual o design dos níveis consistia normalmente apenas de corredores mais ou menos lineares, com inimigos infindáveis e repetição ad nauseam. Este último quarto de nível até seria de perdoar, pois geralmente não durava muito e desaguava noutro dos pontos altos do jogo: os bosses. Com diálogos, designs e personalidades cunhados pelo estilo ridículo e cool acima de tudo de Goichi Suda, os bosses surgiam como a apoteose do nível, com mecânicas bem desenhadas e desafiantes. Estas lutas apenas eram maculadas por um pequeno senão: o finishing move com o qual a franquia geralmente premeia o jogador no fim das lutas deixa muito a desejar, não tendo grande impacto.

No entanto, quando chegava à terceira ou quarta Death Ball, comecei-me a aperceber de uma coisa: não só o jogo em si está organizado numa estrutura cíclica, como, embora cada Death Ball seja diferente, a sua estrutura é quase sempre a mesma. Entramos no nível, somos introduzidos a novos inimigos e novas mecânicas, exploramos alguns caminhos alternativos para desbloquear uns coleccionáveis (falaremos destes mais tarde), comemos ramen e vamos à casa de banho (sim, leram bem), enfrentamos hordas e hordas de inimigos, são introduzidas algumas ligeiras alterações às mecânicas, repetição das mesmas ad nauseam e lutamos contra um boss. Esta repetição faz com que o factor novidade de cada nível vá diminuindo ao longo do jogo, sendo que quando chegamos à última Death Ball, já conseguimos mais ou menos prever o que vai acontecer em termos de level design e só queremos despachar aquilo para chegar ao boss e ao próximo pedaço suculento de história. É pena, pois as mecânicas e os níveis em si são suficientemente interessantes e de qualidade para TSA:NMH ser um muito bom jogo se os níveis fossem 20 minutos mais curtos. Sendo assim, continua a ser uma experiência bastante divertida e de qualidade, mas é possível que se encontrem entediados de vez em quando.

Deixando para trás os níveis, voltamos à hub, a caravana de Travis. Aqui recebemos a opção de comprar t-shirts cosméticas pertencentes a indies famosos, ou com dinheiro adquirido nos níveis, ou com as azteca stones, que junto com novas skills e t-shirts do Unreal Engine, constituem os coleccionáveis disponíveis no jogo. Além disso podemos aceder a posters, do género “revista de jogos”, alusivos a cada Death Ball (que além de agradavelmente retro e cómicos, contêm alguns segredos úteis), aceder a mensagens crípticas sobre a história do jogo via fax, ou continuar a busca pelas Death Balls, em estilo visual novel. Estas secções são uma das minhas partes favoritas, mas penso que o valor das mesmas é diferente de jogador para jogador, pois baseiam-se unicamente em texto com algumas imagens alusivas ao que está a acontecer. Pessoalmente, a escrita hilariante, as situações ridículas, os tropes usados e a frequente quebra da quarta parede, assim como as faixas sonoras chiptune presentes, foram o suficiente para me aliciar e prender a estes pequenos trechos de história.

O Deadpool não chega nem perto dos calcanhares destes meninos!

Avaliar o enredo de TSA:NMH de uma maneira objectiva não é fácil. O estilo agressivo, cómico, surreal e extremamente leviano com que a história é contada não é de todo ortodoxo, o que poderá afugentar alguns jogadores. Para mim, a imprevisibilidade e surrealidade da história foram precisamente o que me fez a vários momentos rir às gargalhadas ou ficar estupefacto com o que estava a acontecer. Mais importante, foi o que me fez esquecer que, há escassos minutos, estava a ficar aborrecido com o mesmo jogo. Para os fãs da franquia, a história não é de todo uma progressão para a personagem ou para o enredo geral, sendo mais um intermezzo, um ponto de pausa e relançamento para o que vem a seguir.

Tendo sido o ciclo traçado até à sua origem, devo dizer que para os jogadores que procuram um jogo diferente, cómico e leve que não seja extremamente longo (demorei cerca de 10 horas a terminar o jogo), ou que gostem do estilo surrealista ou retro do criador do jogo, TSA:NMH recomenda-se. Para quem nunca teve contacto com o criador ou o estilo de jogo, ou não desenvolveu interesse no jogo ao ler a crítica, recomenda-se esperar por um preço mais baixo, porque há muitos jogos mais “normais” para jogar na consola. De qualquer maneira, TSA:NMH é um jogo com um estilo inegável, cheio de referências e muito divertido. Podem encontrá-lo na Nintendo eShop a 39,99€.